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Segunda parte da minha polêmica nas páginas do Observatório da Imprensa com o auto-intitulado filósofo Olavo de Carvalho, ignorante em ciência e defensor do criacionismo.

Acima: Fóssil de Ichthyosaurus no Museu de História Natural de Vienna (Naturhistorisches Museum Wien, Foto: j.colucci)

O FANTASMA DE DARWIN – PARTE 2

Publicado originalmente no Observatório da Imprensa de 5 de outubro de 2004 – Edição 297

 

Em sua longa resposta à minha crítica, publicada em duas partes no OI de 03/8/2004 e 7/9/2004, Olavo de Carvalho me chama de “engenheirinho”, “hipócrita” e “vigarista de Boston” e diz que “não mereço nem uma cuspida na cara”. Sem dados biográficos que lhe permitam disparar os insultos com melhor pontaria, ora diz que sou um “caso extremo de demência senil”, ora que uso de “expediente bobo de deboche pueril”. O homem não é coerente sequer na ofensa. Abro mão do direito adquirido de responder da mesma forma. O leitor não merece isso. Melhor reconhecer logo a superioridade de Olavo de Carvalho na área dos ataques pessoais. Nisso ele é imbatível. Quem duvidar que digite no Google as palavras-chaves: “Olavo de Carvalho, criatura vermicular, anal”.

 

Devemos passar por cima das grosserias de Olavo de Carvalho e, cuidando para que elas não nos sujem a sola dos sapatos, levar a discussão para o terreno onde as suas deficiências são patentes: o das idéias.

 

Devemos passar por cima das grosserias de Olavo de Carvalho e, cuidando para que elas não nos sujem a sola dos sapatos, levar a discussão para o terreno onde as suas deficiências são patentes: o das idéias. Olavo de Carvalho começa fazendo uma análise minuciosa da minha crítica, tentando mostrar ao leitor os ardis que usei para desqualificá-lo. Bobagem. Para desqualificar-se ele não precisa de ajuda. Seu texto é uma auto-declaração de desqualificação. Vejamos.

 

Mau leitor

Para dizer que imito Dawkins ele cita um artigo do New Statesman de 28/08/1992 em que, segundo ele, Dawkins chama Richard Milton de “teórico da terra plana”, “mercador de motos-perpétuos” e “maníaco” (fruitcake). Richard Milton é o autor anti-darwinista que “acusei” Olavo de Carvalho de admirar. Mais tarde, ainda segundo Olavo de Carvalho, Dawkins disse que Milton era “insano”, “estúpido” e “necessitado de assistência psiquiátrica”. O leitor me desculpe o excesso de aspas, mas aqui elas são necessárias. Eis o que Dawkins escreveu (o texto completo pode ser encontrado na referência ao fim deste artigo):

“Every day I get letters, in capitals and obsessively underlined if not actually in green ink, from flat-earthers, young-earthers, perpetual-motion merchants, astrologers and other harmless fruitcakes. The only difference here is that Richard Milton managed to get his stuff published. […] It is true that an occasional lonely figure, originally written off as loony or at least wrong, has eventually been triumphantly vindicated (though not often a journalist like Richard Milton, it has to be said). […] The great Francis Crick (himself not averse to rocking boats) recently remarked that “anyone who believes that the earth is less than 10,000 years old needs psychiatric help.”

Isto é, Olavo de Carvalho não entendeu que Dawkins não chamou Milton de “flat-earther”, “perpetual-motion merchant” ou mesmo “loony”. Quando muito, por inferência, saiu um “harmless fruitcake”, que em português seria “louco manso”. Não entendeu também que quem precisa de ajuda psiquiátrica são os que pensam que a Terra tem menos de 10 mil anos. Sequer entendeu que o autor da frase não é Dawkins, mas o prêmio Nobel, co-descobridor da espiral dupla do DNA, Francis Crick. Compreensivelmente, Olavo de Carvalho omitiu da suposta lista de acusações a Milton a referência aos astrólogos.

Para cometer a gafe acima talvez Olavo de Carvalho tenha caído na conversa de Milton – que disse exatamente o que Olavo copiou – ou talvez não compreenda bem o inglês, mas o que dizer de sua compreensão do português?

Olavo de Carvalho passa boa parte da primeira parte de sua resposta defendendo-se de uma acusação que não lhe fiz, a de ser um “criacionista” no sentido em que o termo é empregado nas polêmicas usuais pró e contra o evolucionismo. O que eu escrevi foi:

“Uma vez que os criacionistas não fazem ciência, e não contam com o suporte de evidências, pesquisas e teorias minimamente plausíveis, sua obsessão é criticar a evolução e os evolucionistas, ou o que percebem como falhas nestes. Para essa tarefa contam com a ajuda ocasional de um ou outro ignorante em ciência que os defende na imprensa com fervor, digamos, religioso. Lendo “O Globo” descobri que, no Brasil, o filósofo Olavo de Carvalho se presta a esse papel.”

Aí eu afirmo duas coisas: (1) que Olavo de Carvalho é ignorante em ciência e (2) defende os criacionistas com fervor religioso. Há evidências suficientes de ambas. Nos intervalos entre os insultos que me dirige, Olavo de Carvalho tenta explicar sua posição sobre a polêmica entre o evolucionismo e criacionismo – polêmica, aliás, que só existe para os religiosos fundamentalistas, já que a evolução é unanimidade entre os cientistas. Para isso cita trechos de um artigo que publicou no Jornal da Tarde. Mais importante do que os parágrafos que cita são os que deixa de citar. Em seu artigo original do JT encontramos a seguinte afirmação, que ele omitiu na citação que fez de si mesmo:

“Todos os mitos giram em torno de dois modelos básicos: o criacionismo bíblico e o casualismo epicuriano. […] É no autoconhecimento, e não em especulações cosmológicas despropositadas, que se descobre, quando se pode, a eficácia maior e a maior legitimidade intelectual do criacionismo, o que não nos dá evidentemente os meios de “refutar” o casualismo, mas apenas o de desmascará-lo como mentira existencial.” Olavo de Carvalho, Jornal da Tarde, 6/5/2004

Casualismo, aqui, é qualquer teoria que explique a criação como um encadeamento lógico de eventos, e portanto, não seja teleológica. Se a omissão desse parágrafo conclusivo do artigo que Olavo de Carvalho usa para mostrar o que pensa sobre o criacionismo não é exemplo de desonestidade intelectual, é preciso reescrever os dicionários.

 

Liberdade com palavras alheias

Em meu texto critiquei Olavo de Carvalho por tomar liberdade com as palavras alheias. Olavo de Carvalho pergunta: qual é a diferença de sentido que ele criou entre afirmação original “se pudéssemos abolir a religião ou convencer as pessoas de que suas religiões são ilusões, provavelmente não teríamos mais atentados suicidas” [Dawkins] e a sua transcrição “Richard Dawkins afirmou que o mundo teria mais paz se todas as religiões fossem abolidas” [Olavo de Carvalho].

 

Olavo de Carvalho não percebe que quanto mais peremptório o tom de suas palavras, mais desmoralizado fica depois que suas fraudes são desmascaradas.

 

Já que perguntou, o escritor, filósofo e jornalista passará pelo constrangimento de ouvir a explicação de um engenheiro. Em primeiro lugar, como bom cientista, Dawkins usou na frase o advérbio de dúvida “provavelmente”. Certeza é coisa das religiões. A ciência trabalha com evidências e estatísticas. Neste caso, como a afirmação é baseada mais em opinião do que em evidências experimentais, cabe o “provavelmente”. Em segundo lugar, “menos atentados suicidas” não é o mesmo que “mais paz no mundo”. Não é difícil imaginar uma situação em que haja menos atentados suicidas e menos paz. Mais difícil é argumentar que a religião não foi fator importante em atentados recentes. Pode ser um fator primário, como quando fundamentalistas muçulmanos lançam um jato contra um edifício aos gritos de “Alá é grande”, ou coadjuvante, como no atentado suicida contra uma escola em Beslan.

Ainda, ao contestar a minha afirmação de que toma liberdade com as palavras alheias, Olavo de Carvalho diz: “A imputação é grave. Se fiz isso, sou mesmo um calhorda.” A imputação é grave, corcordo, mas a prova é indisputável. Dele:

“Talvez o mais ridículo e malicioso expediente usado pelo clube darwiniano para isentar seu anjo protetor de toda culpa pelos feitos do comunismo seja a surrada alegação – retirada novamente do baú pelo sr. Colucci – de que a biologia oficial stalinista, a do geneticista Lyssenko, era antidarwiniana por ser lamarckista.”

Desafio Olavo de Carvalho, ou quem mais queira, a mostrar em meu texto qualquer referência a Lyssenko ou ao lamarckismo. Não contente em reduzir o que eu disse à dimensão tacanha de seu exercício intelectual, Olavo de Carvalho coloca em minha boca palavras que jamais saíram dela.

É esse o homem que, no tom legalista e triunfal dos grandes chicaneiros, declara:

“Demonstrado pela forma da sua argumentação que o sr. Colucci é um vigarista, não me agradaria que os leitores, só por isso, dessem o caso por encerrado, desistindo de examinar a substância dos seus argumentos.”

Demonstrado como, Sr. Carvalho? Me chamando de vigarista no título do artigo? (Nota: o OI mudou o título original.) Distorcendo o meu texto? Mentindo? Essa é a dificuldade de debater com alguém que subestima a inteligência do oponente e a memória do leitor. Olavo de Carvalho não percebe que quanto mais peremptório o tom de suas palavras, mais desmoralizado fica depois que suas fraudes são desmascaradas.

 

Um parêntese

Eu poderia parar por aqui. Já ficou claro que não estamos lidando com um homem respeitável. Continuo por duas razões. Primeiro, pelo interesse que o assunto despertou, a julgar pela quantidade de e-mails que recebi. Segundo, porque é preciso defender a ciência e o pensamento racional contra os ataques da pseudociência e do misticismo. No Brasil, dada a apatia da comunidade universitária na luta pelas idéias, isso é especialmente importante.

Muita gente boa me escreveu para alertar sobre a futilidade de argumentar com Olavo de Carvalho. Não posso alegar inocência. Ao criticar o seu texto anti-evolucionista eu sabia o que me aguardava, e não ignorava a possibilidade de o Sr. Carvalho repetir o seu padrão costumeiro de insultos, críticas a trechos retirados fora de contexto, distorções do sentido original e a deriva do assunto para áreas onde ele pensa ter mais argumentos. Quando apanhado em erro, finge que não é com ele e muda de assunto. Imagino que suas grosserias agradem alguns, mas rudeza é o truque que o fraco usa para imitar os fortes.

A crítica ao anti-darwinismo de Olavo de Carvalho poderia ser feita com argumentos exclusivamente científicos. A evolução, mais do que uma teoria, é um fato comprovável. Um fato não pode ser negado pela opinião que tenhamos dele, a não ser que se adote uma forma extremada de relativismo pós-moderno. O darwinismo, especialmente após a síntese moderna, é a teoria que explica satisfatoriamente a evolução. A dificuldade de contra argumentar por esse lado é a ignorância científica de Olavo de Carvalho. Há um ditado em inglês que diz “quando só temos um martelo, tudo fica com cara de prego”. Por não dispor do ferramental de precisão necessário para desmentir a evolução em bases científicas, mesmo que isso fosse possível, o Sr. Carvalho usa o seu martelo filosófico-historiográfico. O problema é que, mesmo com martelo tão grande, ele erra a cabeça do prego.

Eu disse em minha crítica que o emaranhado histórico-político-social em que o darwinismo social foi envolvido a partir do fim do século 19 não é coisa para se descrever em dois parágrafos. Talvez nem em dois livros. O Sr. Carvalho construiu um cipoal verbal para se esconder. Desentocá-lo exige que evitemos as distrações que ele plantou no caminho. Elas são muitas, mas duas são especialmente traiçoeiras: a desqualificação do adversário e o desvio do eixo principal do assunto. Rebater a primeira nos colocaria numa posição defensiva, com o risco de tornar a discussão desinteressante. Irei simplesmente ignorá-la. Onde abundam ataques pessoais faltam argumentos. Quanto à segunda, nos cabe trazer o assunto de volta ao que interessa e dispensar os acessórios. Os pontos essenciais da minha crítica são:

    1. A evolução é um fato. Não há dúvida razoável sobre isso. A teoria que melhor explica esse fato é a teoria da evolução por seleção natural de Darwin em sua forma atual: a síntese moderna ou neo-darwinista. Os anti-darwinistas tem que dizer no que acreditam. Não há alternativa científica plausível para a teoria da evolução. O criacionismo e a teoria de que os bebês são trazidos pela cegonha não são plausíveis.

 

    1. A validade de uma teoria científica independe de sua correção política. A teoria da evolução não é menos válida por ter sido usurpada por variadas correntes sociais para os mais variados propósitos ou por contrariar os textos sagrados. A extrapolação da teoria da evolução para a política incorre na falácia naturalística – o erro de derivar valores de fatos. Ainda que as afirmativas do Sr. Carvalho sobre a incorreção política de Darwin fossem corretas (não são, ver próximo item), o status científico do darwinismo não seria afetado.

 

    1. A afirmação de Olavo de Carvalho de que “o evolucionismo foi o pai do comunismo e do nazismo” não se sustenta. Essa definição frouxa de paternidade daria origem a uma família bem mais numerosa. Ou aceitam-se todos os filhos, ou filho algum. O uso político de uma versão adulterada do evolucionismo não é exclusivo do nazismo e do marxismo. Correntes de variados matizes ideológicos recorreram ao darwinismo para justificar as suas crenças.

 

  1. A crítica que Olavo de Carvalho faz ao evolucionista Richard Dawkins demonstra a sua incapacidade de entender conceitos científicos. Como Olavo de Carvalho nada disse a esse respeito por enquanto, não comentarei este assunto.

Não é consenso, não é científico

Olavo de Carvalho diz que trato a sua afirmativa de que o evolucionismo está nas origens do comunismo e do nazismo como a opinião de um esquisitão isolado (palavras dele), e não como “um consenso científico bem estabelecido”. Não seja presunçoso, Sr. Carvalho. Eu jamais esperaria encontrar uma idéia original em seus escritos. A insistência em demonstrar que o evolucionismo é o pai do nazismo e do comunismo é um tema recorrente da literatura criacionista.

O criacionista americano Henry Morris vê na evolução a justificativa para quase toda a filosofia e prática maligna conhecida pela humanidade, incluindo o darwinismo social, o racismo, o nazismo, o marxismo, o incentivo ao aborto, a homossexualidade e o uso de drogas. Mas nem Morris está sendo original. Antes dele o juiz Braswell Dean, de Atlanta, acrescentava a essa lista a permissividade, promiscuidade, pílulas anticoncepcionais e perversões diversas. Olavo de Carvalho pode ser esquisitão, mas isolado jamais.

Em seu crédito, pode-se dizer que Olavo de Carvalho abrandou a sua posição inicial, provavelmente por percebê-la indefensável. O que era “o evolucionismo foi o pai do comunismo e do nazismo” passou a “o papel estratégico que o darwinismo desempenhou em substituir à moral cristã uma ética baseada na superioridade material”. Menos categórico, embora ainda errado. Na área dos “disclaimers”, diz o Sr. Carvalho:

“Nenhum desses historiadores ou dos muitos outros que os acompanham nas suas conclusões (indico alguns nas notas de rodapé) nega a complexidade de uma seqüência causal cheia de correntes cruzadas, nem atribui ecslusivamente [sic] ao darwinismo a paternidade dos movimentos totalitários.”

O problema aqui é o grau de complexidade da seqüência causal. Em se tratando do nazismo e do comunismo, ela é tal que nenhuma conclusão é possível, e qualquer opinião será necessariamente ideológica e nunca científica, como quer Olavo de Carvalho, revelando os critérios frouxos com que usa o termo “científico”.

Para demonstrar que a relação entre evolucionismo, nazismo e comunismo é “um consenso científico bem estabelecido”, Olavo de Carvalho recorre a Richard Weikart, Robert M. Young e John Reeve Pusey. Veremos a seguir que essa relação não é consenso, não é científica e não é bem estabelecida.

O primeiro dos três citados – Weikart – é “fellow” do Discovery Institute, uma notória instituição de propaganda criacionista nos EUA. Weikart sustenta a afirmação de Olavo de Carvalho sobre a associação entre evolucionismo, nazismo e comunismo, mas de maneira bem menos veemente do que quem o citou. Para Weikart a relação entre socialismo e darwinismo é ambígua e ele prefere usar o termo darwinismo socialista, em vez de darwinismo social, para mostrar que os socialistas alemães favoreciam um tipo de darwinismo adulterado sob medida, que colocava o homem como criatura única no universo. Quanto ao nazismo, embora Weikart o associe ao darwinismo, acrescenta que movimentos políticos diametralmente opostos ao nazismo também o fizeram.

O segundo autor, Robert Young, afirma que o darwinismo é social porque a ciência é social, com o que concordo. A afirmação faz pouco para dissolver a distinção entre darwinismo e darwinismo social, exceto pela confusão semântica que provoca. Young afirma a natureza ideológica da própria busca dessas relações e, contrariando o que Olavo de Carvalho quer que ele diga, diz que a “ciência” (aspas dele) mais relevante para o marxismo é a história e não as ciências naturais. Comentando o contexto histórico atual em que os estudos de Darwin são realizados, diz Young: “[em história] temos mais fatores explicativos do que o necessário. Quais escolher e enfatizar e quais subestimar ou ignorar é reflexão de nossas tendências políticas e ideológicas”

Esta última opinião, de autor citado pelo próprio Olavo de Carvalho, bastaria para encerrar a discussão. Da seqüência complexa de fatores que influenciaram o nazismo e o comunismo cada um tira o que quer. Qualquer pretensão de “consenso científico” nos moldes das ciências naturais é deitada por terra. Para que não reste dúvida, na próxima seção examinaremos rapidamente o que disseram outros historiadores que trataram do tema.

O terceiro autor citado, John Reeve Pusey, é especialista em história da China. Evito comentar seus textos por não ter acesso aos originais.

 

Evolucionismo e nazismo

O historiador do nazismo Richard M. Lerner, que acredito insuspeito por ser crítico feroz do determinismo biológico e de Richard Dawkins, escreveu: “[conforme Richards e Kalikow] … a teoria da evolução não foi plenamente aceita no Terceiro Reich, mas sabe-se que Hitler foi influenciado pelo darwinismo social alemão e pelo pensamento da higiene racial.” Isto é, Lerner faz distinção clara entre darwinismo (teoria da evolução) e darwinismo social alemão. Ainda segundo Lerner, o tradutor para o inglês do Mein Kampf, Ralph Manheim, afirma em nota da edição americana que Hitler nunca tentou sistematizar o conhecimento, e seu raciocínio amparava-se em fatos desconexos. Em outras palavras, não se espere encontrar um padrão lógico e coerente de conduta no nazismo.

A ideologia nazista apoiava-se em conceitos de ação: uma mistura de determinismo biológico, política nacionalista e fanatismo religioso. A influência fundamental no darwinismo social alemão foi Haeckel, cientista evolucionista fundador do princípio do monismo ­– uma filosofia que propalava um estado forte e centralizador como motor do progresso humano através da competição racial, sacrifício de grupo e guerra internacional. Haeckel era um supremacista ariano e anti-semita. A ligação entre o darwinismo social de Haeckel e o nazismo é real, porém indireta e complexa. Na cabeça de Haeckel misticismos irracionais conviviam com a ciência.

Edward Larson, em seu último e atualíssimo livro (ver referência), comenta o uso que dois notáveis – o co-descobridor da evolução Alfred Russell Wallace e o biólogo alemão Haeckel – fizeram das idéias evolucionistas dizendo: “Idéias científicas podem ter significado social, mas são indivíduos os que suprem a sua interpretação. Os casos contrastantes de Wallace e Haeckel desautorizam qualquer conclusão simplista [grifo meu] sobre as implicações sociais da ciência evolucionista. O pensamento evolutivo sustentou tanto o igualitarismo pacifista de um quanto o proto-Nazismo militarista do outro.”

Essa opinião é compartilhada pelo filósofo Michael Ruse, que escreveu “a relação entre os evolucionistas, suas doutrinas biológicas, e as diversas doutrinas sociais supostamente fundamentadas na biologia não é importante. O importante é que indivíduos, incluindo alguns biólogos, tentaram buscar na biologia o suporte para as doutrinas sociais que defendiam.”

O nacionalismo militarista e o anti-semitismo já eram parte da cultura alemã muito antes de Darwin, Haeckel e dos nazistas. O evolucionismo de Haeckel pode ter ajudado a liberar forças que a cultura e as normas sociais mantém represadas, mas não as gerou. Referências à idéia racista de que existem povos superiores e povos inferiores podem ser encontradas tão longe quanto se queira retroceder na história, inclusive nas escrituras sagradas. Diz Lerner “…o determinismo genético é cooptado para servir a agenda política do fascismo. Se tal ideologia biológica não existisse pronta para ser explorada, os fascistas a teriam inventado”.

 

Eugenia nos EUA e na Alemanha nazista

Olavo de Carvalho diz em nota: “Mas tão grande é o ódio do sr. Colucci ao país que o hospeda, que ele chega a reinventar a história do nazismo para enxertar nela uma suposta influência do darwinismo social americano, imputando aos EUA as culpas que cabem a Charles Darwin, a Thomas Huxley e aos evolucionistas alemães.”

Eu disse ao leitor que não responderia às ofensas de Olavo de Carvalho, mas peço licença para abrir uma exceção. Atribuir-me ódio ao país em que vivo e que admiro sem saber porque estou aqui, a convite de quem, minha história pessoal ou qualquer fato substancial que garanta aquela conclusão é exemplo supremo de leviandade. Esse cidadão não tem decência. Continuo em respeito ao leitor.

Não reinvento a história. Em “War Against the Weak”, o ganhador do International Human Rights Award Edwin Black mostra que o conceito de uma raça pura, de olhos azuis e cabelos louros foi criada nos EUA e cultivada na Califórnia décadas antes da subida de Hitler ao poder. Através da análise de cartas e telegramas, Black mostra como a Rockfeller Foundation, em Nova York, ajudou a financiar o Instituto de Antropologia, Hereditariedade Humana e Eugenia Kaiser Wilhelm, em Berlim. Na época do “grant” da Fundação Rockfeller o chefe do instituto chamava-se Otmar Freiherr von Verschuer, e era uma espécie de herói nos círculos eugenistas americanos. Seu assistente chamava-se Josef Mengele.

 

Atribuir-me ódio ao país em que vivo e que admiro sem saber porque estou aqui, a convite de quem, minha história pessoal ou qualquer fato substancial que garanta aquela conclusão é exemplo supremo de leviandade. Esse cidadão não tem decência. Continuo em respeito ao leitor.

 

Quando as atrocidades nazistas começaram a ser conhecidas nos EUA, lá pelo fim dos anos 30, o Instituto Rockfeller e outras corporações americanas apressaram-se em cortar os laços com a Alemanha e a livrar-se de evidências incriminatórias. Não se livraram de todas, como demonstra a ampla documentação coletada por Black. O darwinismo social não foi invenção americana, mas teve seguidores nos EUA. O leitor interessado em detalhes poderá ler Black (há uma edição em português) ou consultar o seu website (ver referência).

 

Evolucionismo e marxismo

Em determinado ponto de seu texto, Olavo de Carvalho afirma que é especialista em historiografia; em outro, tenta demonstrar a ligação entre o evolucionismo e o marxismo através de citações de Marx, Engels e outros expoentes do marxismo sobre Darwin. Pela discrepância entre a declaração de autoridade e a sua demonstração efetiva, Olavo de Carvalho só faz explicitar os perigos do auto-didatismo.

Stack, em artigo que cita Weikart e Young (dois autores que Olavo de Carvalho usa para apoiar a sua tese), afirma: “as observações de Engels devem ser entendidas em parte como uma polêmica geral para evitar que o darwinismo se erguesse como uma barreira contra o socialismo, em parte como propaganda mais paroquial para subtrair de espécies rivais de socialismo o prestígio do darwinismo e de qualquer glória que viesse com ele. Era uma tática que Marx aprovava por completo e que, inicialmente, ajudou a orquestrar”.

A ironia do parágrafo anterior é que Olavo de Carvalho descartou – por ignorância, como se viu – a associação que fiz entre o nazismo e o programa de eugenia americano. Disse que era propaganda enganosa de Hitler. Agora – novamente por ignorância – gasta páginas copiando citações que não são mais do que propaganda marxista. Diz Engels em “A Dialética da Natureza”:

“Toda a teoria de Darwin baseada na luta pela vida é simplesmente a transferência, da sociedade para a natureza animada, da teoria de Hobbes do ‘bellum omnium contra omnes’ e mais ainda: da teoria burguesa da livre competição e da teoria malthusiana sobre a superpopulação. Uma vez levada a cabo essa proeza (cuja justificação incondicional é ainda muito problemática, especialmente no que se refere à teoria malthusiana) é muito fácil transferir de volta essas teorias, passando-as da história natural para a história da sociedade; e, afinal de contas, é uma grande ingenuidade pretender, com isso, haver demonstrado essas afirmações como sendo  leis eternas da sociedade. […] A concepção da história como sendo uma série de lutas de classe, tem um conteúdo muito maior e mais profundo do que a sua simples redução ao conceito de luta pela vida.” (F. Engels, A Dialética da Natureza)

A afirmação de Engels está errada sob muitos aspectos filosóficos e científicos. Interessante notar como a primeira frase ganhou vida própria nas ciências sociais. O darwinismo não é “luta pela vida”. O próprio Darwin desautorizou essa interpretação. O impacto da revolução darwinista no radicalismo e no socialismo foi pequena. A analogia biológica forçada conduziu à idéia de evolução progressiva à custa de perder seu caráter estritamente darwinista. Marx e Engels tinham atitude idêntica com relação a Darwin. Admiravam o golpe mortal que o darwinismo deu na concepção metafísica da natureza, mas não aprovavam o malthusianismo que o subjazia. Segundo Stack, ambos ridicularizavam a teoria da evolução por seleção natural por mostrar que “a livre empresa e a luta pela existência que os economistas celebram como a mais alta realização histórica é o estado normal do reino animal”, o que nos remete ao próximo tópico.

 

Evolucionismo e capitalismo

Olavo de Carvalho diz que tento provar que o darwinismo não influenciou o comunismo porque influenciou o capitalismo. Diz ele:

Quando o sr. Colucci, para provar que o evolucionismo darwinista não influenciou o marxismo, alega que ele influenciou o liberalismo capitalista, a confusão é precisamente desse tipo. […] Tentar equiparar o peso político da influência darwinista nos regimes de países capitalistas e comunistas, como o faz o sr. Colucci, é fraude no sentido mais estrito do termo.

Não julgue o meu raciocínio pelo seu, Sr. Carvalho. Eu não disse isso. É só conferir no original. A coisa mais próxima disso que eu disse foi:

O darwinismo foi apropriado para explicar uma gama imensa de posições políticas e doutrinas sociais, de esquerda e direita. Defensores do individualismo, socialismo, militarismo, pacifismo, economia de mercado, intervenção do estado na economia, religião e agnosticismo extraíram de Darwin, nem sempre de forma pertinente, a justificativa de que precisavam para a sua ideologia.

Há um tema comum e patológico aqui: Olavo de Carvalho pinça algo do meu texto (não só do meu, ele faz isso com outros) que tenha relação tênue com algum slogan que queira gritar para a sua torcida organizada e o adultera na medida exata para a crítica. Quem é que iria perceber, a não ser o próprio criticado? No caso acima, ele gasta 1027 palavras (cortesia do MS Word) para rebater o que eu não disse.

Essa atitude é comum entre os defensores do criacionismo. O advogado Phillip Johnson é um dos principais estrategistas do Discovery Institute, uma instituição de propaganda criacionista. Se o leitor tem boa memória de curto prazo, lembrar-se-á que um dos autores citados por Olavo de Carvalho também é “fellow” do Discovery Institute. Em seu livro “Que suas palavras possam ser usadas contra eles”, contendo frases de evolucionistas famosos, Phillip Johnson eleva a arte de distorcer a opinião alheia a um novo patamar. Para facilitar a vida dos criacionistas que escrevem bobagens anti-darwinistas, o livro vem acompanhado de um CD que contém o texto integral e editável da versão em papel. O livro poderia chamar-se, mais apropriadamente, “A arte de citar fora de contexto”. Em favor da causa maior, inspirada por Deus, os criacionistas não se importam em distorcer a opinião de cientistas e intelectuais. No tempo em que estudei o catecismo “não levantar falso testemunho” ainda fazia parte dos dez mandamentos.

Só mais uma vez: a influência do darwinismo, ou de interpretações sociais do darwinismo, deu-se da esquerda à direita. Quando uma idéia afeta todo o espectro político, ressaltar sua influência neste ou naquele movimento não ciência, é ideologia.

As mesmas qualidades malthusianas que tornavam o evolucionismo de Darwin impalatável para Marx e Engels fizeram a delícia de capitalistas americanos. O milionário Andrew Carnegie escreveu em sua autobiografia que ler Darwin foi como começar a enxergar pela primeira vez. Homens como John D. Rockfeller e James J. Hill encontraram na lei da sobrevivência dos mais fortes a justificativa para as suas práticas predatórias e monopolistas. A afinidade de Darwin com o laissez-faire seria, em princípio, menos forçada do que a paternidade do nazismo e do comunismo que os criacionistas querem lhe atribuir, mas ainda assim é falsa. Darwin não é, obviamente, pai do capitalismo.

Falando sobre as múltiplas influências do darwinismo, o pesquisador do MIT Steven Pinker diz: “A vida intelectual foi enormemente afetada pela revolta justificável contra o nazismo, suas teorias pseudocientíficas de raça e sua glorificação sem sentido do conflito como parte da sabedoria evolucionária da natureza. […] Mas historiadores das idéias começam a ver o outro lado da moeda. Durante o século vinte, genocídios igualmente revoltantes foram cometidos em nome do marxismo. […] Os dois grandes genocídios de motivação ideológica do século vinte vieram de teorias sobre a natureza humana que eram diametralmente opostas. Os marxistas não reconheciam a idéia de raça, não acreditavam em genes e negavam a teoria da seleção natural de Darwin como mecanismo de adaptação. Isso mostra que não é o pensamento biológico aplicado à natureza humana que é sinistro.”

 

Darwin racista

Darwin, como qualquer mortal, era sujeito à influência de conceitos, modos de expressão, atitudes e preconceitos de sua época. Condenar Darwin, ou quem mais seja, por preconceitos que eram comuns a todos os de seu tempo e classe social é um erro primário que nenhum historiador sério cometeria. É exatamente isso o que Olavo de Carvalho faz ao pinçar frases racistas de Darwin e Huxley.

No desespero de achar apoio de algum cientista para a sua crítica anti-evolucionista, Olavo de Carvalho cita uma frase de Stephen J. Gould sobre Dawkins – “um pateta dotado de algum talento”. A ironia da citação é dupla. Primeiro porque Gould era marxista, e fez do marxismo a sua religião. “Aprendi marxismo sentado nos joelhos de meu pai”, disse ele em entrevista. Muito da crítica que Dawkins lhe fazia tinha a ver com o fato de Gould deixar a sua ideologia marxista influenciar a sua opinião científica. Segundo, porque, um pouco antes de Gould falecer, Dawkins e ele restabeleceram o relacionamento cordial e escreveram juntos uma carta contra o criacionismo.

É Gould quem diz: “…não se pode condenar alguém apenas por ter repetido um postulado que era voz corrente em seu tempo, por mais que hoje tenhamos o direito legítimo de deplorar esta atitude. […]  a crença na desigualdade sexual e racial era inquestionável e canônica entre os homens da classe alta da Inglaterra vitoriana – e sujeita a tanta controvérsia quanto, digamos, o teorema de Pitágoras.”

Para um homem de classe alta de meados do século dezenove, Darwin tinha idéias liberais e era um opositor feroz da escravidão. Sobre sua passagem pelo Brasil, Darwin escreveu:

“No dia 19 de agosto, deixamos afinal a costa brasileira. Graças a Deus, nunca mais terei de visitar um país escravista. […] Perto do Rio de Janeiro eu vivia ao lado de uma senhora idosa que mantinha em casa  um instrumento para esmagar os dedos de seus escravos homens. Hospedei-me em outra casa em que um serviçal mulato era insultado, surrado e perseguido dia e noite com insistência suficiente para quebrar o espírito do mais inferior dos animais. Vi um menino pequeno, de seis ou sete anos, levar três chicotadas na  cabeça nua (antes que eu pudesse interferir) por me  ter servido água num copo que não estava perfeitamente limpo. Seu pai tremia ao mero encontro dos olhos de seu senhor. […] Aqueles que olham com brandura para o senhor de escravos e com o coração frio para o próprio escravo, parece que nunca se colocam no lugar deste último; que triste destino, sem qualquer esperança de alteração! Procure imaginar a possibilidade sempre presente de ter sua mulher e seus filhos pequenos – objetos a que a natureza faz mesmo o escravo se apegar – arrancados de sua companhia e vendidos como animais a quem der o primeiro lance! E essas façanhas são praticadas e toleradas por homens que afirmam amar o próximo como a si mesmos, que crêem em Deus e rezam para que seja feita a Sua vontade sobre a terra!.” Charles Darwin, A viagem do Beagle (1839).

Gould também cita Thomas Jefferson e Abraham Lincoln como exemplo de homens que fizeram declarações abertamente racistas – pelos padrões de hoje – mas que lutaram pela igualdade de direitos e da não-exploração. De Jefferson: “Acredito, portanto, apenas como suspeita, que os negros […] são inferiores aos brancos em seus dotes tanto físicos quanto mentais. […] qualquer que seja o grau de seus talentos, ele não é uma medida para seus direitos”. Darwin manifestou opinião semelhante, e indignou-se quando alguém sugeriu que as raças inferiores não mereciam tratamento idêntico, dizendo que jamais concordara com o conceito napoleônico de que o poder é a razão.

Criticar o comportamento de figuras do passado com base em crenças e atitudes do presente é primarismo. Se procurarmos na história do Brasil, mesmo a relativamente recente, encontraremos declarações racistas de pessoas que lutaram pela igualdade racial. Todos lemos Monteiro Lobato na infância. Lobato, que, pela boca de Emília, não falava da Tia Nastácia sem botar na frase o qualificativo “negra beiçuda”, não pode ser considerado racista. Não havia na época uma pessoa branca de classe média que não soltasse uma frase racista de vez em quando. Felizmente isso acabou, ou deveria ter acabado.

 

Seria Darwin um darwinista social?

A idéia de que Darwin era um darwinista social é defendida por Robert M. Young. O historiador considera que nunca houve uma separação clara entre a pesquisa biológica de Darwin e as suas origens e extrapolações no darwinismo social. É verdadeira se considerarmos que Darwin era influenciado pelo ethos de seu tempo, de maneira semelhante ao que discutimos acima para o racismo. É falsa se atribuirmos a Darwin o endosso dos programas sociais discriminatórios e persecutórios realizados em nome do evolucionismo. O próprio Young considera essa discussão desinteressante. Ela é, segundo ele, mais um “porrete para bater nos positivistas”.

O que é desinteressante para o historiador Young torna-se, para o Sr. Carvalho, um cavalo de batalha. Em parágrafo especialmente delirante, o Sr. Carvalho se supera ao dizer:

“A esse fim [encontrar uma explicação naturalística para a origem da moral] dedicaram-se as pesquisas que ele empreendeu ao longo das duas décadas seguintes: é um programa de ideólogo social realizado com instrumentos de naturalista. O darwinismo não foi transformado em darwinismo social ex post facto por ideólogos alheios à ciência natural: ele nasceu como darwinismo social na cabeça do próprio Darwin e foi transformado em evolução natural para dar respeitabilidade científica ao propósito inicial de Darwin de achar uma explicação naturalística para a origem das normas morais.”

Deixe-me ver se entendi. Charles Darwin, um filho de família nobre, dono de terras, criado nas tradições da Igreja Anglicana, navega pelo mundo por cinco anos com o fim de procurar evidências naturalísticas para o seu programa filosófico-social. Atravessa tempestades, contrai moléstias tropicais, passa pela costa do Brasil, presencia um terremoto no Chile. Seleciona inúmeros exemplos que a natureza, por cortesia, colocou em seu caminho. Volta e escreve as quase 300 páginas de “A origem das espécies”. Não as publica. Escreve extensa correspondência dando conta de sua angústia pelas consequências da descoberta sobre a sociedade. Estaria sendo falso? Ao ler o manuscrito que o jovem zoólogo Alfred Russel Wallace lhe enviara percebe que Wallace, trabalhando independentemente, chegara a conclusões idênticas às suas. Dá a Wallace o crédito devido como co-descobridor da evolução, mas trata de desempoeirar e enviar para o tipógrafo o manuscrito de “A origem” que coletava pó na estante há dezesseis anos. Juntos, o capitalista e o filho da classe média espalham pelo mundo a mensagem revolucionária e subversiva que Darwin planejou durante mais de vinte anos.

Peço desculpas pelo tom de galhofa, mas não dá para levar a sério a afirmação de Olavo de Carvalho. Quem é que pode acreditar que Darwin gastou duas décadas da vida procurando uma justificativa biológica para a origem da moral? O pior é que o parágrafo de Robert M. Young que o Sr. Carvalho usa para se justificar jamais conduziria a essa conclusão alucinada, principalmente se lido no contexto do artigo original.

Darwin não reduzia a moral ou a crença religiosa às suas causas naturalísticas ou origens biológicas, tanto que, quando lhe perguntaram se o teísmo e a evolução eram compatíveis, Darwin respondeu que “sem dúvida um homem pode ser um teísta ardente e um evolucionista, veja Charles Kingsley e Asa Gray”.

 

Conclusão

Vimos que a discussão das influências do darwinismo sobre vários movimentos políticos e sociais é essencialmente ideológica. Um mar de citações não resolveria a questão. A força explanatória do darwinismo é tal que pensadores de qualquer ponto do espectro ideológico não resistiram à tentação de usá-lo. Não há lógica intrínseca ou pertinência maior nesta ou naquela apropriação política e social do darwinismo. A esse respeito, o historiador Robert Proctor disse: “As pessoas encontram em Darwin o que querem encontrar. Onde Carnegie viu competição, Kropotkin via cooperação. Onde Morgan e Alexander viam a glória de Deus, os pragmatistas americanos viram a liberação do jugo da teologia. Onde Spencer viu a necessidade de luta, Bebel via a possibilidade de simbiose.”

Quando Olavo de Carvalho ataca o darwinismo, a pergunta que qualquer bom advogado faria é cui bono? Se não é criacionista é o que? Quem é que se beneficia dos ataques contra Darwin? Ainda não apareceu qualquer teoria alternativa científica minimamente plausível ao darwinismo. Os criacionistas sabem disso e sequer tentam convencer o estabelecimento científico. Sua luta é pelos corações e mentes do público. Entre os componentes dessa estratégia inclui-se o ataque ao darwinismo ou ao que os criacionistas percebem como falhas deste. Uma das preferidas é o darwinismo social.

Criacionistas contemporâneos buscam intencionalmente aumentar a confusão entre o darwinismo como teoria científica e as consequências de sua apropriação por ideologias políticas, salientando as que resultaram em sofrimento humano. Ainda que a associação fosse correta, ela jamais invalidaria o status científico do darwinismo. Isso seria como desacreditar a relatividade de Einstein por causa da bomba atômica. Ciência não se decide por voto popular. A teoria mais correta não é necessariamente a mais politicamente correta.

Há quatro bilhões de anos atrás as primeiras entidades auto-replicadoras apareceram na Terra. Mais de três bilhões de anos se passaram até o surgimento dos primeiros organismos multicelulares. Os hominídios só ergueram as patas dianteiras do chão escaldante da África há cinco milhões de anos. O primeiro de nossa espécie só marchou para a história nos últimos cem mil anos. Com ele (ou ela), a consciência humana. Ainda somos crianças no universo. Darwin disse, na última sentença de “A origem das espécies”:

“Há grandeza nessa visão da vida, que, enquanto este planeta girava pelo espaço de acordo com as leis fixas da gravitação, de tão simples princípio as mais belas e maravilhosas formas tenham evoluido e ainda evoluam.”

Só podemos concordar com Darwin e sua lição de humildade. Não somos especiais. Formamos, com o resto da vida no planeta, um contínuo e delicado equilíbrio. Há design e desígnio neste mundo? Sim, há. Há design nas incontáveis manipulações do acaso e da necessidade, agindo em incontáveis locais e circunstâncias, sem que milagre algum as tenha causado a não ser o trabalho incessante da evolução pelos éons da história. Quem não vê poesia na ciência não tem imaginação. O homem é pequeno, mas a sua visão pode ser grande. Não devemos permitir que os inimigos do espírito humano a roubem de nós.

Agradecimento: Ao amigo Manuel Bulcão por suas sugestões valiosas, enviadas por e-mail.

NOTAS

[*] Olavo de Carvalho, em atitude típica, nunca se desculpou por esse absurdo que eu nunca disse e que ele atribuiu a mim. Apontei-o na resposta e ele fingiu que não escutou. Honestidade intelectual é uma qualidade rara. E já que estamos falando em honestidade intelectual, manda esse princípio que a discussão completa, com os dois lados da polêmica, seja apresentada ao leitor. Foi o que fiz na introdução desta série.

[**] Na verdade quem disse isso foi Henry M. Morris e não Phillip Johnson. Troquei um criacionista por outro: Johnson é um criacionista americano do Discovery Institute; Morris é um criacionista americano do ICR (Institute for Creation Research). O Olavo explorou ao máximo esse fato, mas ele relativamente inconsequente para a conclusão. O fato de eu ter sido levado ao erro por um website criacionista não é desculpa. Desculpei-me devidamente na tréplica.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Black, Edwin – War Against the Weak: Eugenics and America’s Campaign to Create a Master Race. Nova York: Four Walls Eight Windows, 2003.

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Desmond, Adrian e Moore, James – Darwin: a vida de um evolucionista atormentado. Geração Editorial; 2000.

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Futuyama, Douglas J. – Science on trial. Nova York: Pantheon Books, 1983.

Gould, Stephen J. Bully for Brontosaurus: Reflections in Natural History, Norton & Company, 1992.

Gould, Stephen Jay – Dedo mindinho e seus vizinhos: ensaios de história natural. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Larson, Edward J. – Evolution: The Remarkable History of a Scientific Theory. Nova York: Modern Library, 2004.

Lerner, Richard M. – Final Solutions: Biology, Prejudice and Genocide. Pennsylvania: Pennsylvania State University Press, 1992.

PINKER, Steven – A biological understanding of human nature: a talk with Steven Pinker. (website) http://www.edge.org/3rd_culture/pinker_blank/pinker_blank_index.html

Proctor, Robert N. – Racial Hygiene: Medicine Under the Nazis. Cambridge Mass.: Harvard Univ. Press, 1988.

Ruse, Michael – The Darwinian Revolution. Chicago: University of Chicago Press, Chicago, 1979.

Stack, D. A. – The first Darwinian left: Radical and socialist responses to Darwin, 1859-1914. History of Political Thought, Vol. XXI, Nº. 4, Winter 2000.

Weikart, Richard – Socialist Darwinism: Evolution in German Socialist Thought from Marx to Bernstein. Bethesda, MD: International Scholar Pub., 1998.

Young, Robert M. – “Darwinism IS Social” in David Kohn, ed., The Darwinian Heritage. Princeton and Nova Pacifica, 1985, pp. 609-638.

Young, Robert M. – The Darwin Debate. Marxism Today v.26, Nº4, Abril 1982, pp. 20-22.

 

O Fantasma de Darwin – Início

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A POLÊMICA

 

Introdução


O fantasma de Darwin – Parte 1

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20 de julho de 2004 – Edição 286


Resposta a um fantasma de Boston (1)

Olavo de Carvalho

Observatório da Imprensa

3 de agosto de 2004 – Edição 288


Resposta a um fantasma de Boston (2)

Olavo de Carvalho

Observatório da Imprensa

7 de setembro de 2004 / – Edição 293


O fantasma de Darwin – Parte 2

José Colucci Jr. (*)

Observatório da Imprensa,

5 de outubro de 2004 – Edição 297


Novos blefes de um vigarista contumaz

Olavo de Carvalho

(resposta de José Colucci Jr. ao fim da página)

Observatório da Imprensa

19 de outubro de 2004 – Edição 299

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