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Análise crítica de “Bum Bum Tam Tam”, de MC Fioti

Acima: MC Fioti (Foto: Divulgação Kondzilla)

Vídeo: Bum Bum Tam Tam, MC Fioti (KondZilla)

BUM BUM TAM TAM: A POESIA DE MC FIOTI

 

Nesta crítica analisarei “Bum Bum Tam Tam”, de MC Fioti, no contexto do vídeo clip que lançou a composição. É imprescindível assim o fazer, já que, no funk, letra, melodia, ritmo e imagem — principalmente imagens de estruturas posteriores da anatomia humana — são indissociáveis. A letra:

É a flauta envolvente
Que mexe com a mente
De quem tá presente
As novinha saliente
Fica loucona
E se joga pra gente

(aí eu falei assim pra ela:)

Vai com o bum bum tam tam
Vem com o bum bum tam tam
Vai mexe o bum bum tam tam
Vem desce o bum bum tam tam


Vai mexe o bum bum tam tam
Vem desce o bum bum
Vai com o bum bum
Vem com o bum bum (com o bum bum, com o bum bum)
Vai treme o bum bum tam tam tam tam tam tam tam tam tam tam tam tam tam tam

 

MC Fioti (2017)

 

Influências barrocas

Ao ouvir a composição pela primeira vez, o amante da música clássica identificará imediatamente a Partita em Am para flauta solo BWV 1013, de Johann Sebastian Bach (1722). Infelizmente, apenas os dois compassos iniciais da Allemande foram usados no sampling. Na opinião deste crítico, o artista poderia ter usado integralmente o original em substituição aos trechos de sua autoria, com ganho musical imensurável. Mas cabe ao crítico entender o artista e se consolar no fato de que, em Leipzig, uma lápide pesada de granito impede o cadáver do compositor alemão de se revirar demais em seu túmulo.

MC Fioti, que se pronuncia “fióti”, nasceu Leandro Aparecido Ferreira em Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo. Fioti, que já nos havia dado obras do nível de “Mexi-Ku”, “Vai Toma” e “Senta Novinha”, se superou artisticamente com “Bum Bum Tam Tam”. Um dos conceitos mais intrigantes dessa nova composição é a “flauta envolvente”, que oferece várias possibilidades de decodificação.

Tanto o flautista de Hamelin quanto o flautista de Capão Redondo mexem com a mente das novinhas com suas flautas. O crítico omitirá aqui qualquer referência a Freud. Às vezes, uma flauta é só uma flauta.

A primeira que me ocorre é a alusão ao Flautista de Hamelin, uma história do folclore alemão que, contada pelos Irmãos Grimm, é universalmente conhecida. Como todos sabem, o flautista resolveu o problema da infestação de ratos em Hamelin atraindo-os para o rio com o poder mágico de sua flauta. De maneira análoga, a flauta envolvente de MC Fioti atrai fêmeas vertebradas para… MC Fioti. Mas as similaridades não acabam aí. Depois de um desentendimento com o prefeito da cidade, o Flautista de Hamelin, por vingança, toca sua flauta para atrair para dentro de uma caverna as crianças da cidade. A flauta de MC Fioti, analogamente, deixa “as novinha saliente” tão “loucona” que elas “se joga pra gente”. Difícil acreditar que isso seja mera coincidência: tanto o flautista de Hamelin quanto o flautista de Capão Redondo mexem com a mente das novinhas com suas flautas. O crítico omitirá aqui qualquer referência a Freud. Às vezes, uma flauta é só uma flauta.

Por um momento suspeitei que a palavra “saliente” escolhida aqui pelo artista pudesse ter significado outro que não o léxico-normativo. O “Dicionário inFormal” online define o vocábulo como “atrevido”, “falta de respeito” ou “pessoas petulante” (sic). Esta última definição, aliás, é uma inovação dicionarística: trata-se de caso único de absoluta ausência de nexo semasiológico-gramatical em um dicionário, mas suspeito que os linguistas da Unicamp a aprovariam, a julgar por minha polêmica com um deles.

 

A Flauta Mágica

Em um segundo momento de reflexão, decidi que a alusão ao Flautista de Hamelin seria óbvia demais para um artista do quilate de MC Fioti. Embora tenha sido citada na obra de Goethe e de Robert Browning, a história do Flautista de Hamelin é para crianças novinhas. MC Fioti deve ter introduzido aqui algo mais profundo.

Teria o artista feito um gesto velado à “Flauta Mágica”, de Mozart (Die Zauberflöte, K. 620, 1791)? É uma possibilidade intrigante. Na ópera de Mozart, a Rainha da Noite convence o príncipe Tamino, acompanhado por Papageno, a resgatar sua filha Pamina, que fora sequestrada pelo alto-sacerdote Sarastro. Papageno ganha os favores de uma velha mulher ao flertar com ela e, assim, recebe de presente a flauta mágica. Entre seus inúmeros poderes, a flauta mágica pode transformar tristeza em alegria, conjurar pessoas e protegê-las do perigo.

No vídeo clip, a flauta de MC Fioti tem, certamente, poderes mágicos. Senão, como explicar a atração das mulheres por MC Fioti após ele botá-la na boca? Há que se considerar também que o vídeo clip de “Bum Bum Tam Tam” conta, no momento em que escrevo, com mais de 600 milhões de visualizações no YouTube, foi traduzido para o inglês e já foi visto até na Indonésia. Não há dúvida de que essa flauta consegue transformar em ouro matérias orgânicas menos nobres.

Não há dúvida de que essa flauta consegue transformar em ouro matérias orgânicas menos nobres.

Poderíamos continuar a explorar a influência de Mozart sobre MC Fioti considerando as semelhanças entre o cenário escolhido por este para o vídeo — um harém em que ele é o sultão, em representação estereotípico-momo-carnavalesca — e o cenário de “O Rapto do Serralho” (Die Entführung aus dem Serail, K. 384), uma das óperas do autor austríaco. Para não cansar o leitor, deixarei esta elaboração teórica a cargo do fantasma de Joãosinho Trinta.

 

MC Concreto

O trecho da obra que mais incita a imaginação é o que diz:

Vai com o bum bum tam tam
Vem com o bum bum tam tam
Vai mexe o bum bum tam tam
Vem desce o bum bum tam tam

Vai mexe o bum bum tam tam
Vem desce o bum bum
Vai com o bum bum

Que escolha estilística teria levado MC Fioti ao salto cronológico que o fez passar repentinamente de referências barrocas (Bach) e clássicas (Mozart) ao repertório concretista? Sim, porque a segunda parte da letra apresenta características nitidamente concretistas como o jogo entre o eixo paradigmático e o sintagmático. Para explicar o que é isso, o melhor é comparar um poeta a outro. Na letra de “A Vizinha do Lado”, Dorival Caymmi diz:

A vizinha quando passa
Com seu vestido grená
Todo mundo diz que é boa
Mas como a vizinha não há

Ela mexe co’as cadeiras pra cá.
Ela mexe co’as cadeiras pra lá.
Ele mexe com o juízo
Do homem que vai trabalhar

Quando a vizinha de Caymmi “mexe co’as cadeiras pra cá e pra lá”, a ação é descrita no eixo sintagmático pelas palavras convencionadas. Mas o movimento das cadeiras da vizinha também é descrito pela alternância das palavras “cá” e “lá”, que coincidem com os acentos da melodia. Esse é o eixo paradigmático, que dá à composição um sentido de movimento lateral, para cá e para lá.

Já com as “novinha” de MC Fioti, o movimento é em outra direção. A alternância de “Vai com o bum bum…” e “Vem com o bum bum…”, implica um movimento longitudinal desse par de glutei maximi. O bum bum vai e vem e mexe e desce e treme, terminando no paroxismo final “bum bum tam tam tam tam tam tam tam tam tam tam tam tam tam tam”. Onde Caymmi sugere, MC Fioti explicita. Um é sensual; o outro, sexual.

Já com as “novinha” de MC Fioti, o movimento é em outra direção. A alternância de “Vai com o bum bum…” e “Vem com o bum bum…”, implica um movimento longitudinal desse par de glutei maximi.

Enquanto a poesia concreta era essencialmente visual, fazendo o jogo entre a escrita (sintagma) e sua representação gráfica (paradigma), a poesia do funk é essencialmente auditiva, usando a palavra como elemento rítmico. Pode-se notar a influência dos concretos sobre MC Fioti no ostinato “bum bum tam tam”, que ecoa pela peça toda e nos remete ao poema “Beba Coca Cola” (1957), de Décio Pignatari, posteriormente musicado por Gilberto Mendes:

 

Beba Coca Cola, Decio Pignatari

Beba Coca Cola, Décio Pignatari (1957)

 

No “Beba Coca Cola”, Décio Pignatari faz a anti-propaganda, a crítica da cultura de massa. Em uma sucessão de anagramas, Pignatari vai de “beba coca-cola” a “babe cola”, “cola caco”, e termina em “cloaca”. De certa forma, o poema de Fioti começa onde o de Décio termina.

Se as influências que citei, e mesmo outras que me passaram despercebidas, foram fruto de longa reflexão ou resultado inconsciente da sensibilidade apurada do artista é algo que nunca saberemos. Não importa. São desses mistérios que se nutre a arte.

 


NOTA: Continuando em minha missão de levar alta cultura às massas, me proponho a analisar outras obras do extenso repertório funkeiro. No momento, estou em dúvida entre “Rabiola”, de Kevinho; “Vai Malandra”, de Anitta; “Festinha do Bundão”, de MC Coxta; “Que Tiro Foi Esse”, de Jojo Todynho; “Bunda Maluca”, de MC Gustta e “Rapidamente Treme o Bumbum”, de MC Hollywood. Aceito sugestões.

7 Comentários

  1. Carla Deckmann

    Muito interessante a sua interpretação e análise crítica da obra. Merece estar numa antologia de Estudos sobre Teoria Literária!!!Parabéns pela rara compreensão dis novos compositores brasileiros!!!

    Responder
    • JC

      Obrigado, Carla. O que eu tentei fazer, humildemente, foi contribuir um pouco para a compreensão teórica do funk – a nova música brasileira.

      Responder
  2. Desiree Martini

    Beleza de texto! Sugiro então “Paraíso” de Pablo Vittar em parceria com Lucas Lucco. Mas, não vale só o áudio, assistir ao vídeo é imprescindível. Boa sorte em suas pesquisas!

    Responder
    • JC

      Obrigado, Desirée, pela sugestão. Irei mergulhar de cabeça na obra de Pabllo Vittar e Lucas Lucco. O pouco que ouvi me fez perceber que deve haver ali algo mais do que percebemos à primeira audição.

      Responder
  3. Maritza

    Você sabe que sou de poucas palavras,, o que você fez foi jogar pérolas aos porcos, conhecimento quase milenar jogado numa m€&£@ de som (isso nunca será música ). Mas continue , é triste mas divertido. Bj

    Responder
    • JC

      Obrigado, Maritza. Continuarei empenhado na missão de decodificar o funk. Tentarei manter a mente aberta para novos gêneros, com o cuidado, é claro, de não pegar uma infecção por coliformes fecais.

      Responder
  4. Damaris Bastos Ferreira de Menezes

    Tudo nesta vida, por pior que seja, sempre haverá um lado positivo …, no caso o bom de todas essas letras de ritmo funkeiro, é a sua analogia, impagável!
    Aguardo as próximas!

    Responder

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