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Explicações simples e corretas sobre

a ciência da pandemia de COVID-19

 A CIÊNCIA DA PANDEMIA

Guia básico para os curiosos – Parte 2

 

Interrompendo o crescimento da pandemia

Vimos na Parte 1 deste artigo que a estratégia de deixar todo mundo pegar a infecção para que a população fique protegida pela imunidade de grupo tem um custo alto em vidas humanas. Porém, o custo de manter o distanciamento social de toda a população, exceto o de trabalhadores de setores essenciais, tem um custo alto para a economia.

O distanciamento social de toda a população — o chamado isolamento horizontal — funciona por limitar o contato próximo entre indivíduos e, assim, evitar a transmissão do vírus. No Brasil e em muitas partes do mundo chamamos o isolamento horizontal de quarentena. O termo pegou, mas é tecnicamente incorreto. Quarentena vem dos quarenta dias que a tripulação e os passageiros de um navio tinham que permanecer isolados no porto quando houvesse suspeita de infecção a bordo. Começou na Itália, durante a peste bubônica do século quatorze. Assim, é bom lembrar que o isolamento horizontal não é uma invenção moderna. Vem desde a Idade Média. Mais recentemente, durante a gripe espanhola de 1918, fecharam-se escolas, cinemas, restaurantes, teatros e proibiram-se funerais, casamentos e cerimônias ou ajuntamentos de pessoas.

O isolamento social não é uma invenção moderna. Começou na Itália, durante a peste bubônica do século quatorze.

Proponentes do chamado isolamento vertical querem substituir o isolamento de toda a população pelo isolamento de grupos específicos de pessoas, as com maior risco de morrer ou desenvolver quadros graves. Entre esses estão os idosos, diabéticos, cardíacos, imunodeficientes e pessoas com problemas respiratórios. Esses grupos de risco ficariam em casa enquanto as pessoas mais jovens e saudáveis voltariam a uma vida próxima do normal, com a abertura de lojas, empresas, instituições públicas, escolas e universidades.

Afinal o isolamento vertical funciona ou não? Uma das coisas frustrantes para o público leigo é não ter respostas definitivas dos especialistas para questão alguma. Este caso não é exceção, infelizmente. A resposta é: depende.

Você se lembra do conceito de “achatar” a curva da primeira parte deste artigo. A ideia é diminuir o crescimento do número de infecções novas para que o número total de infectados não ultrapasse a capacidade do sistema de saúde de tratar dos doentes. Também sabemos que a maioria dos que se infectam não tem sintomas graves e se recuperam sem qualquer tratamento especial. Estamos falando, na verdade, em cuidar daqueles 5%, em média, que precisam de assistência médica para se recuperar.

Vimos também que esse achatamento não é tudo ou nada. Há vários graus intermediários entre uma pandemia descontrolada, com cadáveres se empilhando na rua como no Equador, e um isolamento quase total. Você se lembra que quando achatamos a curva, o pico da infecção, quando se acumula o maior número de pessoas infectadas e com necessidade de hospitalização, fica mais distante no tempo. Imagine uma situação em que o pico da curva fique abaixo da capacidade do sistema de saúde, desse jeito:

Duas coisas acontecem quando a curva fica abaixo: (1) não há prejuízo algum para os doentes. Desde que não se ultrapasse a capacidade do sistema de saúde, todos serão atendidos da mesma maneira. Mas isso ocorre da mesma maneira se estiver um pouco abaixo ou muito abaixo. É capacidade não usada. (2) Existe o risco de atrasarmos a volta ao trabalho mais do que o necessário e causar males evitáveis na economia.

O pico da curva é a única medida que temos para aferir o estágio da pandemia naquela população e promover uma volta controlada ao trabalho e à vida normal. Em uma situação em que o número de infecções novas está crescendo, isto é, quando estamos na parte ascendente da curva, o isolamento vertical é perigoso. Aos casos novos que surgem todo o dia, mesmo com o isolamento social, acrescentaremos os casos extras que inevitavelmente surgirão quando as pessoas saírem da quarentena. Estamos jogando mais lenha na fogueira antes de saber qual será o tamanho do fogo. O momento em que o isolamento vertical pode ser tentado é quando já tivermos passado pelo pico da infecção e a curva estiver na descendente.

Se pudéssemos fazer isso com precisão matemática, teríamos uma situação mais ou menos assim:

Na curva acima, o número de novas infecções é exatamente igual ao número de pessoas que deixaram o sistema hospitalar, seja porque se curaram ou morreram. Na prática, isso jamais acontece. O número de novas infecções flutua bastante, desse jeito:

Enquanto o número máximo de infectados necessitando de cuidados médicos estiver abaixo da capacidade do sistema, a situação é controlável. Às vezes, um tempo depois do número de novos casos chegar a zero, a infecção reaparece. O problema é quando ultrapassa a capacidade do sistema:

Já deu para perceber que a volta ao trabalho e à normalidade com o isolamento vertical, em condições seguras, não é algo que se possa improvisar. Uma volta desordenada poderia causas mortes evitáveis. Outra coisa a notar é que o objetivo aqui é reduzir a taxa de mortalidade. Fazemos isso ao garantir que os que precisarem de atenção médica encontrarão leitos disponíveis nos hospitais e ao manter os mais vulneráveis isolados em casa. A chave é — ­­você já sabe — ter números precisos, testar amplamente a população, criar estratégias para identificar rapidamente os novos casos e isolar os que tiveram contato com eles. Parafraseando uma frase famosa, o preço da liberdade de sair de casa durante o coronavírus é a eterna vigilância. Dá pra entender por que tenho dito que estatísticas confiáveis são vitais? É questão estratégica.

A pergunta mais natural diante desse estado permanente de vigilância seria: Para sempre? Felizmente, não. Vimos que quando uma certa porcentagem da população está imunizada, a imunidade de grupo garante a segurança de todos. No caso do coronavírus, a porcentagem necessária para a imunidade de grupo é estimada entre 60 e 70%. Será atingida quando essa parte da população tiver adoecido e se curado ou quando tivermos uma vacina, o que chegar antes. Alguns morrerão, como morrem pessoas em epidemias, mas não por falta de assistência médica.

Países que estão voltando à vida normal

Faz sentido falar da China, por ter sido o primeiro país a registrar um caso e o primeiro a voltar ao trabalho depois do isolamento social. Nas fábricas e escritórios, o uso de máscaras é obrigatório. Pratica-se o distanciamento social nos restaurantes, cantinas e lugares públicos. Para permitir isso, as horas de trabalho foram escalonadas ao longo do dia e da noite. Mas a grande diferença entre a China e os governos democráticos do ocidente, é o grau de fiscalização que o estado consegue exercer sobre os cidadãos.

Na China, a maioria da população vive em grandes comunidades residenciais. Qualquer pessoa que entrar nos limites de uma comunidade terá a temperatura do corpo medida por termômetros de infravermelho, deixará seus dados pessoais, terá os documentos de viagem e de residência examinados e dará informações para contato caso tenha sido exposta ao coronavírus. Pelo lado político, as medidas chinesas lembram a distopia do romance “1984”, de George Orwell, sobre regimes totalitários. Do ponto de vista epidemiológico, no entanto, essas medidas permitem que comunidades e autoridades da saúde identifiquem e informem as pessoas que tiverem contato com o coronavírus, botando-as de quarentena.

 

Trabalhadores chineses praticam o distanciamento social na hora do almoço em uma fábrica da Honda em Wuhan.

 

Medidas como as da China não são viáveis em países democráticos, onde há limites para a interferência do estado na vida dos cidadãos. Os países da Europa são um exemplo. Neles, a curva da pandemia já dá sinais de estar chegando ao pico ou já o ter passado. Por isso, a Comissão Europeia criou recomendações para seus 27 países membros. Segundo essas recomendações, o isolamento social pode ser abrandado desde que:

  • As infecções tenham diminuído significativamente for um certo período de tempo.
  • Os hospitais tenham leitos, unidades de cuidados intensivos, remédios e equipamento suficiente para atender os doentes.
  • Se desenvolva capacidade para testagem em larga escala da população, monitoração da transmissão do vírus, acompanhamento de casos e de pessoas em quarentena.

Uma vez que essas condições existam, o isolamento social deverá ser gradualmente abrandado seguindo as seguintes recomendações:

  • Aplicativos de celular para monitorar o contato entre pessoas e avisar se alguém próximo está infectado.
  • Manutenção do distanciamento social.
  • Aumento dramático na testagem. Segundo a comissão, essa é uma condição essencial para eliminar as medidas de distanciamento social no futuro.
  • Medidas de proteção para pessoas idosas e os que precisam ficar isolados por mais tempo.
  • Gradualmente eliminar as restrições a viagens e passagens entre fronteiras “entre áreas com risco de infecção comparável”.
  • Viagens chegando de fora da União Europeia serão permitidas mais tarde, dependendo da situação de cada país.
  • O retorno ao trabalho deve ser gradual e nem todo o pessoal deverá voltar ao mesmo tempo. Trabalho remoto deve ser encorajado e, inicialmente, apenas os grupos de menor risco e setores essenciais à atividade econômica devem retornar.
  • Agrupamentos de pessoas serão gradualmente liberados, com restrições e medidas especiais para escolas e universidades, atividades comerciais, bares e restaurantes.
  • Os países membros devem estar prontos para reiniciar medidas mais severas de isolamento se o número de casos ameaçar ultrapassar a capacidade do sistema de saúde.

Dá para ver que não dá pra liberar a geral e esperar que tudo dê certo. Voltar com segurança ao trabalho requer planejamento cuidadoso e ação coordenada das autoridades. As medidas na China, Europa, Coréia do Sul e Japão são, na verdade, parte de um experimento global não planejado. É preciso observar e aprender com eles. Espero que o Brasil, os EUA e outros países onde a pandemia começou um pouco mais tarde façam isso.

Já deve ter ficado claro que uma volta completa à vida como era antes da COVID-19 só será possível quando houver uma vacina ou uma cura para a doença. É possível que atingir a imunização de grupo leve mais tempo do que para desenvolver uma vacina.

 

A geografia do coronavírus

Depois que comecei a acompanhar e a publicar as curvas da pandemia no Brasil e a compará-las com as da Itália e dos EUA, uma pergunta frequente é se não deveriam ser ajustadas para a população, bem diferente nos três países. A resposta não é tão fácil e intuitiva.

Há vários fatores que influenciam o quão vulnerável um lugar é ao coronavírus. Os principais são a densidade populacional e o influxo de visitantes de outros lugares. É por isso que os principais focos surgiram em cidades grandes como Nova York, Londres e São Paulo e em regiões industriais como Wuhan, Detroit e o norte da Itália, que estão conectadas ao mundo pela cadeia de fornecimento. Mas o destino de uma cidade grande não é inexorável. Cidades como Singapura, Seul, Hong Kong e Tóquio controlaram razoavelmente bem a pandemia, embora ainda estejam sujeitas ao reaparecimento das infecções. O que fez a diferença foi o distanciamento social.

Escolhi a Itália e os EUA como comparação porque julguei que a Itália representaria um caso extremo, onde as medidas de contenção foram tomadas tarde demais, e os EUA porque me pareceu na época que o Brasil seguiria uma curva similar. Errei na comparação com os EUA. E a diferença principal é o número de focos.

Imagine a infecção como um fogo na floresta. O fogo começa em um determinado ponto e “não sabe” o tamanho da floresta. Tanto faz estar em um bosque ou na floresta amazônica, se houver um único foco ele irá se espalhando em círculo e queimando o mesmo número de árvores independentemente do tamanho da floresta até que seja contido. Só interessam o tipo de árvores, a densidade (distância entre elas) e as condições climáticas. O fim do fogo representaria o fim da infecção.

A situação é diferente se o fogo começar em vários lugares, por exemplo, através de material incandescente levado pelo vento. Essas fagulhas seriam o análogo do trânsito de pessoas entre as cidades, levando com elas o vírus.

 

Analogia entre um incêndio na floresta e um foco de infecção. O fogo “não sabe” se a floresta é grande ou pequena.

 

O vírus não respeita fronteiras geográficas desde que haja trânsito de pessoas entre essas fronteiras. Foi por isso que vários países da Europa tiveram múltiplos focos de infecção em um intervalo de tempo bastante curto. E foi por isso também que a China, que onde tudo começou, não teve muitos casos. Apesar das críticas merecidas, o governo chinês conseguiu isolar as regiões afetadas muito rapidamente e impedir a propagação para outras regiões.

Agora olhe o mapa que ilustra o topo desta página. As linhas verdes representam o tráfego aéreo no mundo. Veja quantas linhas cruzam os países da Europa entre si e vão da Europa aos EUA. Note que o número de linhas da Europa ao Brasil é bem menor. A maioria das grandes cidades americanas tem um aeroporto com voos diretos para a Europa e a Ásia. O Brasil tem 29 aeroportos internacionais, nem todos com voos para a Europa; os EUA têm 149. Além do que, a mobilidade interna nos EUA é muito grande.

Apesar das duas semanas de vantagem sobre a Europa, os EUA não se apressaram a fechar a fronteira aos primeiros sinais da pandemia. Com isso, o coronavírus viajou como passageiro clandestino no corpo de milhares de americanos que vieram da Europa e continuaram viajando dentro dos EUA. Os focos de infecção começaram em muitos lugares ao mesmo tempo e tiveram chance de se expandir até que os EUA os detectassem e introduzissem medidas de isolamento social.

Em fevereiro — isso mesmo, no mês do carnaval — 1189 voos vindos da Europa chegaram ao Brasil e trouxeram 300 mil pessoas. Só da Itália, onde a pandemia já estava em curso, chegaram 25.800 passageiros.

Acredito que no Brasil tenha sido diferente, embora tenhamos tido contato com a Europa. Em fevereiro — isso mesmo, no mês do carnaval — 1189 voos vindos da Europa chegaram ao Brasil e trouxeram 300 mil pessoas. Só da Itália, onde a pandemia já estava em curso, chegaram 25.800 passageiros, segundo a Revista Metrópoles. A maioria desse movimento se deu na região sudeste e na Bahia. Apesar de casos de COVID-19 começarem a aparecer em outras várias regiões do país, poucas providências foram tomadas. Em março o presidente Bolsonaro viajou aos EUA. Vinte e quatro pessoas de sua comitiva acabaram infectadas pelo coronavírus, incluindo o general Heleno, auxiliar próximo do presidente. As fronteiras brasileiras só foram fechadas no dia 19 de março. Um estudo apoiado pela FAPESP concluiu que até 5 de março, 54,8% dos casos brasileiros vieram da Itália; 9,3% da China e 8,3% da França. A partir de 24 de março o Brasil diminuiu significativamente a circulação de pessoas dentro do país e também as vindas de fora dele. Tarde, mas não tão tarde em comparação com os EUA, onde os primeiros casos, sabemos agora, começaram em janeiro. As medidas de contenção podem ter contribuído para diminuir a expansão da pandemia no Brasil.

É pela diferença da frequência e intensidade do contato com a Europa que não estamos vendo no Brasil números como os dos EUA. Mas lembre-se da analogia com o fogo na floresta. Quer se propague lentamente ou tenha apenas um foco ou múltiplos focos, se durar muito ele pode acabar com a floresta toda. Não há razão para relaxar.

Comecei essa explicação toda para ilustrar algumas das dificuldades de se fazer comparações entre países. A China teve muitos casos de COVID-19, mas tem 1,4 bilhões de habitantes. Se usarmos como parâmetro o número de casos por milhão de habitantes, parecerá que na China a pandemia de COVID-19 não foi muito séria. O contrário ocorreria, por exemplo, na Bélgica, que tem 11 milhões de habitantes. Menos do que a cidade de São Paulo. Mas se medíssemos apenas a região do foco da infecção, veríamos que a situação em Wuham, na China, foi pior.

A única comparação razoável, para a qual seria difícil obter dados, seria entre focos em cidades de mesmo porte e mesma densidade urbana.

 

Na Parte 3: Como analisar risco e agir para diminuí-lo. Não, não é conselho sobre ficar em casa, usar máscaras no rosto e álcool gel nas mãos. Isso você já sabe.

Nota: Meu objetivo com esta série foi oferecer informações corretas em linguagem não-especializada sobre como pensar sobre essa pandemia de COVID-19 e outras pandemias que inevitavelmente surgirão no futuro. Tópicos relacionados a assuntos do momento, com data de validade, continuarão na minha página do Facebook. Nos próximos capítulos desta série abordarei vacinas, a situação brasileira em particular e tentarei apresentar a minha visão pessoal do mundo post-COVID-19.

3 Comentários

  1. Assis

    Muito informativo.
    Obrigado.

    Responder
  2. Manuel Antônio Velazquez

    Excelente texto Colucci, como residente em Salvador sei que está cidade recebe um grande número de turistas europeus, principalmente italianos…
    Mas infelizmente nossas autoridades políticas não atentaram para a possibilidade da chegada dessas “fagulhas” no Brasil principalmente na época do carnaval…

    Responder
  3. Giorgio Giorgi

    Batuta, obrigado!

    Responder

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