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Não sou uma pessoa de reflexos rápidos, mas a adrenalina me deu instantaneamente os reflexos de um campeão de videogame.

 

Acima: Ganso egípcio (Alopochen aegyptiacus). A espécie não é nativa do Texas, mas se proliferou rapidamente no ambiente natural daqui. Fazem uma visita anual ao nosso laguinho.
 
 

AMOR AOS ANIMAIS / Parte 1 de 2

 

Mudei para Jumanji

Há dois anos nos mudamos para uma casa linda em Austin, TX. Fica no alto das montanhas, à beira do rio, em contato com a natureza. A parte problemática é justamente essa última, o contato com a natureza. O último boletim do nosso condomínio trazia a seguinte atualização de um dos moradores:

“Spotted a pack of coyotes behind our home last evening. The past week we’ve found a ferociously devoured armadillo and an equally devoured skunk in our open backyard area. Thought it might have been from a coyote. Confirmed last night with a sighting. Keep your pets inside and don’t leave food out.”

Em outras palavras, mudamos para Jumanji. Sabe aquele filme em que os protagonistas começam a jogar um videogame e acabam no meio da selva. Esses somos nós. Nossa vizinha, horrorizada, nos disse um dia que viu passar uma águia carregando um gatinho nas garras. Um vizinho filmou um lince (bobcat) em seu quintal. Bandos de coiotes são comuns. Consequência do aumento da população de veados, que destroem os jardins. Mas os coiotes, inteligentes como são, logo descobrem que comer cachorrinhos dá bem menos trabalho do que caçar veados, coelhos, tatus ou gambás – todos comuns por aqui. E assim se completa a cadeia alimentar do subúrbio americano.

 

Esse Jacurutu, que os americanos chamam de Great Horned Owl (Bubo virginianus), aparece sempre quando a luz do dia já se foi. Às vezes canta na árvore do meu quintal, com uma voz grossa. É o Louis Armstrong das aves. Pode chegar a 1.5 m de envergadura. 

 

Não falei ainda das cobras. Aliás, falar de cobra no Texas é redundância. É o mesmo que falar de calor no Piauí ou de frio na Antártica. São muitas: pretas, marrons, verdes, vermelhas, multicoloridas, lisas, listradas, rajadas. Entre as peçonhentas contam-se as corais (não há falsa coral no Texas, todas têm veneno), cascavéis, a copperhead (cobra cabeça-de-cobre) e a cottonmouth (cobra boca-de-algodão) – uma cobra aquática de picada fatal, assim chamada por ter o interior da boca branco como algodão. Uma amiga nadava tranquilamente em sua piscina no quintal quando uma cottonmouth entrou na água para lhe fazer companhia. As cottonmouth nadam com a cabeça e parte do corpo pra fora d’água, uma visão aterradora. Ela, a amiga, quase paralisada de medo, olhava para a cobra enquanto tentava escalar de costas os azulejos para sair de lá. Sei o que é isso, pois tive um encontro próximo e traumatizante com uma cobra no quintal de casa. Se você tem medo de cobra, é melhor parar de ler por aqui.

Eu e a cobra

Minha mulher tem medo patológico de cobra. A ofidiofobia é um dos medos mais comuns, afetando cerca de um terço das pessoas. Meu orientador – o saudoso Décio Pignatari – dizia que herdamos de nossos ancestrais pré-históricos os três medos mais comuns: o medo de altura, de escuro e de répteis. Só que o medo que a minha mulher tem de cobra extrapola qualquer descrição médica da ofidiofobia. A mera fotografia de uma cobra provoca nela sintomas do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

Uma tarde ela, quando ela passava o aspirador de pó nas poltronas da varanda, levantou uma almofada e encontrou debaixo dela uma cobra grande, rajada, toda enrolada e pronta para o bote. Eu não estava em casa e só consegui extrair dela essa história depois de um dia. Ela me ligou logo depois do ocorrido, mas não conseguia formar frases coerentes. Só queria ficar em cima da cama para não ter que botar nunca mais o pé no chão, que é, obviamente, onde as cobras vivem. Você deve estar pensando que minha mulher é uma dessas pessoas que têm medo de tudo. É o contrário. Ela é uma mulher completamente autossuficiente, corajosa, tem doutorado em biologia, é cientista e resolve muito melhor do que eu qualquer problema prático da vida. Seu problema são os seres rastejantes.

Por insistência dela, chamei um especialista em ofídios para tentar achar a cobra. Foi gastar dinheiro à toa. O especialista me disse que raramente encontra uma cobra quando é chamado. Não duvido, pois levou dois dias para aparecer. Deu uma olhada superficial à volta da casa e passou um repelente de cobras no perímetro do terreno. Descobri depois pela Internet que esses repelentes de cobra são completamente inúteis.

Deixei de pensar muito no assunto, apesar de minha mulher dizer que sentia a presença da cobra nas redondezas. Pessoas com medo fazem isso, sentem a proximidade de perigos inexistentes. Dois meses se passaram.

Um dia eu comecei a limpar o espaço debaixo da varanda. Algumas casas americanas, quando não têm porão de altura normal, têm um espaço debaixo delas chamado “crawl space” (espaço para rastejar), assim chamado porque é baixo demais para que um adulto possa ficar em pé ali. Embora o “crawl”, do “crawl space” se refira a um humano rastejando, no caso que vou contar o nome se revelou ainda mais apropriado.

…compartilhar um espaço pequeno, em que você só pode engatinhar, com uma cobra daquele tamanho não é a sensação mais agradável do mundo.

Ao levantar uma caixa grande, me deparei com uma cobra de pouco menos de um metro e vinte (medi depois) que se escondia debaixo dela. Com o susto, eu me esqueci de onde estava e levantei. Bati forte com a cabeça em uma das vigas do assoalho acima. Ainda meio tonto, peguei uma pá que guardo ali junto com outras ferramentas de jardinagem e tentei acertar a cobra. Errei. Em vez de acertar na cabeça, acertei o meio do corpo. A cobra, que até então tentava fugir, partiu para cima de mim sibilando, com as presas à mostra. Acho que não preciso dizer que compartilhar um espaço pequeno, em que você só pode engatinhar, com uma cobra daquele tamanho não é a sensação mais agradável do mundo. Não sou uma pessoa de reflexos rápidos, mas a adrenalina me deu instantaneamente os reflexos de um campeão de videogame. Dei uma segunda “pazada” na cobra. Desta vez acertei-a na cabeça. A cobra ficou ali se debatendo. Eu não percebi, mas devo ter gritado bem alto. Minha mulher ouviu de dentro da casa e logo adivinhou o que tinha acontecido.
 

Desovando o cadáver

Ela exigiu que eu não entrasse com a cobra morta dentro da casa, da varanda, da garagem e nem a jogasse no lixo. Era pra levar para algum lugar longe dali. Voltei para o “crawl space” peguei com a pá a cobra que ainda se debatia e a joguei dentro de uma caixa de papelão. Botei a caixa no carro e dirigi até a floresta mais próxima. Já escurecia. Tirei a caixa do carro, andei por um bom tempo em uma trilha feito um justiceiro procurando o lugar certo para desovar um cadáver. Achei uma clareira onde, pensei, as aves de rapina se encarregariam de eliminar a evidência. Abri a caixa de papelão, olhei dentro e … cadê a cobra?

Não estava mais lá. Ou pelo menos foi o que pensei. Um arrepio me percorreu a espinha. A cobra tinha escapado dentro do carro! Comecei a voltar para o carro, mas parei e resolvi examinar melhor a caixa. Talvez eu não tivesse enxergado a cobra na escuridão. Percebi que um pedaço de papelão que estava dentro da caixa poderia ter ocultado a cobra. Enfiei a mão dentro para levantá-lo e nesse momento, a cobra se enrolou na minha mão. Nunca achei que tivesse a capacidade de dar um grito daqueles. Foi desses gritos que só se veem em filme de terror. Sabe aquele “Aahhhh, aahhhh, aahhhh…”, a plenos pulmões? Até então, eu achava que esses gritos fossem uma convenção do cinema. Mas, não. Eu dei um grito desses. Um grito que se alguém tivesse ouvido teria chamado a polícia. Principalmente quando vindo de uma mata escura.

Descobri pela Internet que os ofídios têm o sistema nervoso descentralizado. Você pode cortar a cabeça de uma cobra que ela continuará a se mexer por um longo tempo, com os reflexos intactos. Peng Fan, um cozinheiro da província de Guangdong, na China, morreu pela picada de uma cabeça de cobra que ele havia separado do corpo da mesma vinte minutos antes. Era uma naja, iguaria da culinária chinesa. A notícia saiu em vários jornais. A Internet também me ensinou que a cobra que eu matei era uma “rat snake” (cobra de rato). Rat snakes são territoriais. Elas “adotam” uma casa para morar e não saem de lá. Aqui no Texas, algumas pessoas até gostam que uma rat snake adote a sua casa. A cobra ajuda a controlar a população de roedores. Rat snakes são consideradas não peçonhentas, mas isso não é verdade. Têm um veneno fraco, insuficiente para matar um adulto. São parecidas com as cascavéis até no nome (rat snake x rattlesnake) e têm comportamento parecido, inclusive o de vibrar a cauda quando seu território é invadido.
 

Especismo

Esse episódio produziu em mim sentimentos conflitantes. Não sou a favor de matar animais selvagens ou destruir a natureza, mas não poderia ter deixado uma cobra territorial dividir o espaço com alguém que tem medo patológico de cobra. Por outro lado, nós invadimos o espaço delas. O meu condomínio, que existe há mais de 30 anos, talvez seja um exemplo recente de invasão, mas praticamente todo o território ocupado por humanos já foi um dia da vida selvagem. Onde é que traçamos a marca? Tem também a questão do “especismo”, a discriminação contra os que não pertencem à certas espécies. Por que preferimos algumas espécies de animais à outras? Por que nos horroriza ver uma águia carregando um gatinho e não nos horrorizaria ver essa mesma águia carregando uma cobra? Por que os nossos cachorrinhos são mais importantes do que os coiotes? Já que estamos nisso, por que as vidas dos cães e gatos são mais importantes do que as os frangos e bois que morrem para que eles se alimentem? Ou por que as nossas vidas são mais importantes do que a dos animais?

Na segunda parte deste artigo explorarei essas questões. Antes, eu gostaria de ouvir a sua opinião. Deixe o comentário abaixo.

4 Comentários

  1. Edson Rosa Pimentel

    O pavor por cobras vem da nossa infância. Nossos pais já falavam, cuidado! Não vai lá porque tem cobra, escorpião ou sei lá mais o quê. Com isso temos aquele medo das cobras principalmente. Já com gatos e cachorros, é diferente, desde crianças ganhamos bichinhos de pelúcia que são cachorrinhos, gatinhos e ursinhos, e com isso cachorros e gatos nos são mais familiares.

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  2. Luís Eduardo Salvucci Rodrigues

    Vou abordar só o medo patológico. Já analisei muita gente que tinha fobia. Fobia de escuro, de altura, de espaços fechados, de cavernas, de lugares abertos, de avião, de barata, de rato, de falar em público, de morrer, de cachorro, de injeção, de sangue, de contrair uma doença, de dirigir, de andar de bicicleta, e várias outras. Nem sempre a fobia é a causa da procura pela análise, muitas vezes a pessoa convive bem com ela, porque consegue evitar a situação ou objeto fóbico. Isso é mais difícil para a sua mulher. Como evitar as cobras se você vai morar no espaço delas?
    A fobia provoca muitas reflexões sobre nossa relação com o espaço. Espaço fechado, espaço aberto e espaço de ligação – ou claustrofobia, agorafobia e fobia de meios de transporte. É possível analisar qualquer fobia em função da relação com um destes três espaços. Uma fobia de animal, por exemplo, acontece se você se vê fechado no mesmo espaço que ele, que pode aparecer a qualquer momento. Medo de andar de avião – estar preso num espaço de ligação. Um comportamento atávico dos homens é procurar um lugar apartado onde se sintam seguros, seja uma caverna, seja uma cabana numa clareira – eu aqui, o temido lá fora.

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  3. Cristina

    Eu também não gosto de animais rastejantes. Mas meu marido é igual à Rita, tem pavor de cobra.

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