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O progresso contra o racismo não se dará quando um político branco pego em flagrante for crucificado pelo público. Se dará quando atos corriqueiros de racismo — a discriminação velada na hora de alugar um imóvel, o uso de perfis raciais em questões de segurança, as pequenas agressões diárias sofridas pelas minorias raciais — causarem indignação idêntica.

 

Os frutos estranhos do Sul

 

Northam

Acima: Página do livro da turma de medicina de 1984 em que o governador de Virginia, Ralph Northam, aparece em blackface.

 

A política brasileira é uma zona, concordo, mas a americana não é muito melhor. Veja o caso do estado de Virginia. Há cinco dias, descobriu-se que o governador do estado, Ralph Northam, publicou no livro de formatura de sua turma de medicina de 1984 uma foto extremamente racista. Nela, o governador aparece usando blackface — maquiagem que os brancos usavam nos filmes antigos para ridicularizar os negros — ao lado de um amigo que veste o uniforme da Ku-Kux-Klan. A KKK, como se sabe, ficou famosa pelos linchamentos de negros no sul dos EUA. Billie Holiday gravou uma música linda e triste chamada Strange Fruit, de Allan, Pearl e Wiggins, que canta com a dor que só ela consegue transmitir. Diz a letra:

 

Southern trees bear a strange fruit,

Blood on the leaves and blood at the root,

Black body swinging in the Southern breeze,

Strange fruit hanging from the poplar trees.

 

Pastoral scene of the gallant South,

The bulging eyes and the twisted mouth,

Scent of magnolia sweet and fresh,

And the sudden smell of burning flesh!

 

Here is a fruit for the crows to pluck,

For the rain to gather, for the wind to suck,

For the sun to rot, for a tree to drop,

Here is a strange and bitter crop.

 

——————————————-

 

As árvores do Sul dão frutos estranhos,

Sangue nas folhas e sangue na raiz,

Corpo negro balançando nas brisas do sul,

Frutos estranhos pendurados nos álamos.

 

Cena pastoral do Sul galante,

Olhos esbugalhados, boca retorcida,

Um cheiro de magnólia, doce e fresco,

E, súbito, o cheiro de carne a queimar!

 

Eis os frutos para que os biquem os corvos,

Para que juntem chuva, para que os sugue o vento,

Para que os apodreça o sol, para que os derrubem as árvores,

Eis uma estranha e amarga colheita

 

 

Os frutos estranhos de que fala a letra são, é claro, os corpos dos negros enforcados e deixados “como exemplo” pela KKK nas árvores do sul dos EUA. Ao se deixar fotografar de blackface ao lado de alguém com o uniforme do Klan, o governador Ralph Northam não poderia alegar ignorância. O fez como adulto, décadas depois dos movimentos pelos direitos civis dos anos 60.

O povo e vários políticos pedem a renúncia de Northam. O sucessor de Northam, nesse caso, é o liutenant governor Justin Fairfax. Liutenant governor, nos EUA, é o vice-governador. Só que Justin Fairfax, que é negro, foi acusado de abuso sexual por uma professora universitária. As acusações não foram confirmadas, mas parecem ter base factual. Assim, caso Northam renuncie e Justin Fairfax fique impossibilitado, o terceiro na linha de sucessão é o procurador geral do estado, Mark Herring. Mas Mark Herring declarou que também ele aparece em fotos racistas. Herring já se desculpou preventivamente pela “dor que a sua insensibilidade e seu comportamento possa ter infligido a outros”.

Um detalhe não insignificante dessa história é que todos os três são democratas, isto é, membros de um partido historicamente associado aos direitos dos negros, mulheres e minorias étnicas. A contradição aparente nessa constatação é menor do que se possa imaginar. O presidente Lyndon Johnson, um dos grandes batalhadores pelos direitos civis nos EUA, era um racista que usava a palavra começada por “n” que é um tabu nos EUA. Hugo Black, o juiz da Suprema Corte que marchava pelas ruas com o uniforme da Ku-Kux-Klan, enfrentou a ira dos companheiros sulistas ao votar a favor da abolição das leis segregacionistas. O próprio Abraham Lincoln, o “Grande Emancipador” e um dos maiores presidentes que os EUA já tiveram, era um racista que acreditava que os negros são biologicamente inferiores. Exemplos como esses abundam.

Disse John Blake, colunista da CNN, que é negro, que Lyndon Johnson não sobreviveria à mídia de hoje. Um vídeo imbecil, um tweet intempestivo, uma asneira dita sem pensar transforma-se em uma bomba viral na mídia. Mas, segundo Blake, os piores atos de racismo não são captados pela câmera. O progresso contra o racismo não se dará quando um político branco pego em flagrante for crucificado pelo público. Se dará quando atos corriqueiros de racismo — a discriminação velada na hora de alugar um imóvel, o uso de perfis raciais em questões de segurança, as pequenas agressões diárias sofridas pelas minorias raciais — causarem indignação idêntica.

 

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