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Quanto mais armas, mais crimes. Não é preciso grande esforço intelectual para entender essa relação. Como é então que, para estupefação do resto do mundo civilizado, americanos inteligentes proclamam que para acabar com as mortes por armas de fogo a solução é… mais armas de fogo!

 

Mais armas, mais mortes

Nota: Escrevi este artigo em 2012, logo após a tragédia de Newtown, em Connecticut. Acho que é relevante para a discussão que se dá no Brasil a respeito da maior liberalização na aquisição e porte de armas. É especialmente relevante para mim em face do assassinato de quatro pessoas, hoje (11/DEZ/2018) durante a missa na Catedral de Campinas, minha cidade natal. 

 

Duas Glock Nove

As vendas da Glock 19 – uma pistola semi-automática leve de 9 mm – subiram nos EUA após o chamado Massacre do Arizona, em 2011. O morticínio ocorreu na manhã de um sábado. Na segunda-feira a venda de pistolas semiautomáticas – Glock, a maioria delas – já registrava um aumento de 65% em Ohio, 60% no Arizona, 38% em Illinois, 22% em Nova York, 16% na Califórnia e 5% no restante do país em relação à mesma segunda-feira do ano anterior. Afinal, que prova melhor da eficácia da Glock do que a performance do assassino Jared Loughner?

Usando uma Glock 19 equipada com magazine de alta capacidade, Loughner, de 22 anos, conseguiu em poucos minutos disparar os 33 tiros que feriram 13 pessoas e mataram seis, incluindo uma menina de nove anos nascida em 11 de setembro – data simbólica para os americanos. A congressista Gabrielle Giffords, alvo principal de Loughner, foi atingida mas escapou com vida. Giffords, que havia declarado ao New York Times também possuir uma pistola Glock, ainda tenta se recuperar dos danos neurológicos que sofreu. A bala da Glock de Loughner entrou por trás de sua cabeça, atravessou todo o hemisfério esquerdo de seu cérebro e saiu pela parte frontal, afetando-lhe a visão, a linguagem e a função motora. A matança só não foi maior porque Loughner deixou cair na calçada o magazine cheio de balas ao tentar recarregar a arma, dando aos presentes a chance de dominá-lo. O coronel da reserva Bill Badger, de 74 anos, que tinha sido ferido de raspão por um dos tiros, agarrou Loughner e jogou-o ao chão. “Bill é forte como um touro”, disse mais tarde a sua mulher.

Ao contrário de um revólver, que dispara uns minguados 6 ou 8 tiros e demora para ser recarregado, uma pistola semiautomática pode ser recarregada rapidamente e, dependendo do modelo, aceitar magazines com capacidade para 20 ou mais tiros. Devido à leveza e facilidade de uso, a Glock é a favorita dos bandidos e do público amante das armas. Numa homenagem insólita, o rapper T.I. cita o fabricante de armas austríaco na letra de “Two Glock Nines”:

“Two Glock nines

Any motherfucker whisperin about mine […]

So just gimme the keys

Or these motherfuckers with you are fin to witness ya bleed […]

Put your ass in a body bag, zip it and leave

Ain’t no motherfucker do it like I do

You and your nigga runnin’ up

Put two in him and two in you”

 

Em tradução livre:

 

“Duas Glock Nove

Pra esculachar qualquer X9 […]

Entrega o fubá

Ou esses manés vão te ver sangrar até […]

Voltar pra casa de rabecão

Otário algum me faz pagar pau

Você e o seu malaco vão abrir no pé?

Meto duas azeitonas nele e duas em você”

 

Joseph Zamudio, um dos homens que ajudaram a dominar Loughner, estava armado mas não conseguiu ou não teve tempo de atirar. Ou talvez tenha ficado com medo de ser baleado por outros presentes. Não faltam armas de fogo no Arizona, um dos estados com as leis mais liberais nesse quesito. Um amigo americano me perguntou, quando almoçávamos em um restaurante em Phoenix, se eu sabia o que era a pochete que a maioria dos homens do lugar trazia à cintura. Adivinhei, mas não queria acreditar. Um tiroteio que começasse ali faria vergonha às balas perdidas do Complexo do Alemão.

Talvez a inspiração para Loughner tenha vindo do Massacre de Virginia Tech, um outro assassinato em massa em que a Glock foi coadjuvante. Em abril de 2007, o estudante do Instituto Politécnico de Virginia, Seung-Hui Cho, de 23 anos, matou 32 pessoas e feriu outras 17. Cho usou uma Glock 19 com magazine de 15 tiros e uma Walther PPK com magazine de 10 tiros em dois ataques distintos, separados por um intervalo de duas horas. Em um dos ataques, o professor de engenharia Liviu Librescu, de 77 anos, bloqueou com o corpo a porta da sala de aula para dar a seus estudantes tempo de escapar pela janela. Librescu, que era judeu, sobreviveu aos campos de concentração de Hitler na Romênia mas não às balas que atravessaram a porta.

Loughner, por sua vez, pode ter sido a inspiração para James Holmes, de 24 anos. Em 22 de maio de 2012, Holmes comprou uma pistola Glock 22. Seis dias depois comprou uma carabina Remington 870. No dia 7 de junho, comprou um rifle semiautomático Smith & Wesson M&P15. No dia 6 de julho comprou uma segunda pistola Glock 22. Além dessas armas, Holmes comprou pela Internet um total de 6350 cartuchos de munição de vários tipos, um colete à prova de bala, uma faca de combate e várias bombas de fumaça. No dia 20 de julho de 2012, Holmes vestiu o colete, botou uma máscara na cara, pegou suas armas e entrou num teatro em Aurora, no Colorado, onde estava sendo exibido o filme “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge”. James Holmes se imaginava o Coringa. Matou 12 e feriu 54 pessoas.

 

Poderíamos falar de outros assassinatos em massa, mas o leitor já se convenceu da dificuldade de tentar manter um catálogo atualizado desses crimes nos EUA. Eles continuarão a acontecer com regularidade estatística.

 

Jared Loughner, Seung-Hui Cho e James Holmes adquiriram legalmente as armas que usaram, embora já exibissem distúrbios de comportamento bem antes de o fazerem. As leis americanas proíbem a venda de armas de fogo “a quem represente um risco para si próprio ou para o público”. Na prática, isso não quer dizer muito. Qualquer um que não tenha registro de passagem pela polícia ou não tenha sido declarado mentalmente incompetente por um tribunal será aprovado. Se as autoridades não emitirem a autorização em três dias, o mercador fica temporariamente dispensado da exigência e pode vender a arma ao interessado. Na maioria dos estados americanos uma Glock 19 pode ser adquirida por quem tenha cerca de 500 dólares e mais de 21 anos de idade.

Adam Lanza tinha apenas 20 anos quando cometeu seus crimes, mas a idade não o teria impedido de adquirir legalmente a arma que usou. No estado de Connecticut, onde morava, é preciso ter 21 anos para comprar e portar armas curtas, isto é, pistolas ou revólveres; mas para comprar e portar armas longas, como rifles e carabinas, basta ter 18 anos. Foi com tiros de arma longa – uma carabina Bushmaster XM-15 calibre .223 –  que Lanza matou 20 crianças e seis adultos na escola de primeiro grau Sandy Hook, em Newtown, embora também trouxesse consigo uma pistola semi-automática Glock 20 de 10 mm e uma SIG Sauer de 9 mm. Lanza dispensou a visita à loja de armas porque tinha fácil acesso a elas. Sua mãe, a primeira de suas vítimas, tinha em casa uma coleção razoável – se é que o termo se aplica – de armas potentes e vasta quantidade de munição. As crianças – meninos e meninas entre seis e sete anos – foram mortas com tiros múltiplos à curta distância. Onze tiros em um dos casos. Um policial descreveu no rádio o seu horror ao ouvir os celulares que tocavam insistentemente nas mochilas caídas junto aos pequenos corpos sem vida.

Tudo levava a crer que essa tragédia, ocorrida no dia 14 de dezembro, seria o último assassinato em massa de 2012. Não foi. No dia 24 de dezembro, véspera de Natal, William Spengler, de 62 anos, botou fogo na casa e no carro para poder atirar nos bombeiros chamados para apagar o incêndio. Spengler usou uma carabina Bushmaster XM-15 calibre .223, o mesmo modelo usado por Lanza, para matar dois dos bombeiros e ferir seriamente outros dois. O assassino tinha em casa outras armas e grande quantidade de munição. Não se sabe como Spengler conseguiu obtê-las, pois havia cumprido pena de 17 anos por ter matado a avó a golpes de martelo. Spengler deixou um bilhete dizendo que “…fazia o que sabia fazer melhor: matar gente”.

Poderíamos falar também de Jacob Tyler Roberts, que abriu fogo em um shopping center no Oregon com o rifle semiautomático AR-15 que havia roubado; de Wade Michael Page, o veterano do exército e membro da supremacia branca que matou seis pessoas em um templo Sikh de Milwaukee com uma arma comprada legalmente; de Amy Bishop, a professora da Universidade do Alabama que se levantou durante uma reunião de departamento, puxou uma 9 mm e atirou nos colegas, matando três e ferindo outros três. Não será necessário. O leitor já se convenceu da dificuldade de tentar manter um catálogo atualizado desses crimes nos EUA. Eles continuarão a acontecer com regularidade estatística.

 

In guns we trust

Desde o Massacre do Arizona, em 2011, ocorreram nos EUA 70 assassinatos em massa por armas de fogo. Na maioria dos casos as armas usadas pelos perpetradores foram obtidas legalmente. Os dados são da Campanha Brady Contra a Violência Armada, cujo nome vem de John Brady – o Secretário de Imprensa que ficou paraplégico ao ser baleado durante a tentativa de assassinato do Presidente Ronald Reagan. A prevalência desse tipo de crime no país é tal que muita gente imagina tratar-se de um fenômeno tipicamente americano, o que não é verdade.

A fama advém de os EUA terem um índice de mortes por arma de fogo 6,9 vezes maior do que a média combinada de 22 outros países de alto padrão econômico, concluiu um estudo publicado no “Journal of Trauma”. Essa é apenas a média, que inclui acidentes e suicídios. Na faixa etária de 15 a 24 anos, o índice de homicídios nos EUA é 42 vezes maior do que a média daqueles mesmos países. Assassinatos em massa são apenas a parte mais visível do problema.

Os Estados Unidos têm 88,9 armas de fogo para cada 100 habitantes, a maior proporção do mundo, e estão em primeiro lugar na lista da violência armada entre os países desenvolvidos, com 10,2 mortes por arma de fogo a cada 100 mil habitantes. A Finlândia, o segundo colocado, tem 4,5; o Canadá 2,5; a Inglaterra 0,25; o Japão, onde a posse de armas de fogo é bastante restrita, quase zero. A posição dos países desenvolvidos nesse ranking varia de fonte para fonte e de ano para ano. O que nunca varia é a posição dos EUA – sempre no topo e com grande margem sobre o segundo colocado.

 

Mais armas, mais mortes

Atribui-se a Ésquilo a frase “Na guerra, a verdade é a primeira vítima”. A frase do dramaturgo grego continua valendo na guerra da campanha contra as armas. A maior dificuldade de quem se dispuser a estudar a relação entre as armas de fogo e a criminalidade nos EUA será encontrar estatísticas e interpretações confiáveis. A Internet é um campo minado. Meias-verdades e distorções estatísticas patrocinadas pelo NRA – National Rifle Association – são ecoadas em um sem-número de websites a favor das armas e contribuem para manter a opinião do público americano estacionada no século dezoito.

 

Estudos sérios, como os realizados pela Escola de Saúde Pública de Harvard, mostram que, entre as nações com alta renda per capita, quanto mais armas, mais homicídios. A relação vale também para os estados americanos, cada qual com suas leis específicas de controle da venda e porte de armas. Quanto mais armas, mais crimes.

 

Estudos sérios, como os realizados pela Escola de Saúde Pública de Harvard, mostram que, entre as nações com alta renda per capita, quanto mais armas, mais homicídios. A relação vale também para os estados americanos, cada qual com suas leis específicas de controle da venda e porte de armas. Quanto mais armas, mais crimes. Não é preciso grande esforço intelectual para entender essa relação. Como é então que, para estupefação do resto do mundo civilizado, americanos inteligentes proclamam que para acabar com as mortes por armas de fogo a solução é… mais armas de fogo!

 

A segunda emenda constitucional

A resposta está na constituição dos EUA, um texto belíssimo, que inaugurou a era do estado federal moderno e tornou possível a existência do país. Participaram de sua criação alguns dos gigantes intelectuais da época como Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, John Adams e James Wilson e outros dos chamados “Founding Fathers”, ou “Pais Fundadores”.  Enquanto o Brasil trocou de constituição sete vezes de 1824 a 1988, a constituição americana permanece mais ou menos como foi escrita em 1787.

Diz a segunda emenda da constituição americana: “Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido”. Uma interpretação possível seria dizer que milícia bem organizada deve ser o exército. De fato, a segunda emenda já foi interpretada dessa maneira. Hoje, a maioria dos estudiosos a interpreta como o direito que todo o cidadão tem de possuir e usar armas de fogo. “De qualquer tipo, calibre e potência”, acrescentam alguns membros da NRA.

A idolatria dos americanos por esse documento do século dezoito traz conseqüências práticas. Na expressão do escritor Daniel Lazare, a América tornou-se uma “república congelada”, acorrentada a idéias que não fazem mais sentido no mundo contemporâneo. Na época em que a constituição americana foi escrita, a Inglaterra representava uma ameaça real para a segurança dos Estados Unidos e o direito de portar armas se resumia à liberdade de carregar à tiracolo um mosquete, não uma pistola semi-automática com magazine de alta capacidade.

Anacrônico ou não, o amor que os americanos têm pelas armas de fogo é legitimado pela constituição e reforçado por sua cultura individualista. O finalismo macabro que a mera visão de uma arma de fogo conjura para os não-iniciados inexiste para os que cresceram com elas. Para quem sabe atirar, as armas trazem uma sensação de conforto e proteção. Muitos só dormem com a 9 mm debaixo do travesseiro. Minha mulher perguntou a uma colega de trabalho se ela não tinha medo de morar só, numa área rural isolada. “É claro que não”, disse ela, “Quando ouço algum barulho à noite, pego o rifle, abro a porta da frente e dou alguns tiros de advertência para o ar”. Referências aos “pais fundadores” e ao direito de defesa da propriedade permeiam o discurso e o imaginário coletivo americano.

 

Os americanos pensam diferente

O diálogo com um americano defensor das armas de fogo é frustrante para quem vem de uma cultura diversa. Ninguém sabe disso mais do que Piers Morgan, âncora da CNN. Morgan perdeu a compostura ao entrevistar em seu programa Larry Pratt, diretor executivo da Gun Owners of America (Proprietários de Armas da América, um dos grandes lobbies a favor das armas). A entrevista deu-se alguns dias depois do Massacre de Newtown. Morgan, que é inglês, acusou Pratt de ser “um homem incrivelmente estúpido e perigoso” e de “estar feliz por um desequilibrado ter matado 20 crianças”. O lobby das armas iniciou imediatamente uma campanha pedindo a deportação de Morgan por seu ataque à constituição dos EUA. A petição encaminhada à Casa Branca conta, no momento em que escrevo, com mais de cem mil assinaturas. Ironicamente, ignoraram que opinião de Morgan é protegida pelo direito à liberdade de expressão garantido pela mesma constituição. Morgan, por sua vez, parece estar satisfeito de estar no centro da controvérsia e tira o máximo partido dela.

Pratt desfiou os dois argumentos principais do lobby das armas: é preciso proteger a segunda emenda constitucional, que garante o direito de portar armas, e é preciso acabar com as leis de controle de armas para garantir que todos tenham o direito à autodefesa. “Se ter arma virar crime, só os criminosos terão armas” é um dos slogans favoritos da turma pro-gun.

Quanto ao primeiro argumento, embora a constituição americana tenha se mantido extraordinariamente estável ao longo de mais de 200 anos, ela já sofreu umas poucas revisões importantes. Como notou Jonathan Freedland em artigo para o jornal inglês “The Guardian”, a segunda emenda é isso, uma emenda. A constituição já foi emendada para abolir a escravidão, dar às mulheres o direito de voto e proibir o consumo de álcool na época da lei seca. Se parece impossível no clima político atual estabelecer uma nova emenda constitucional que restrinja a posse e o uso de armas de fogo, é bom lembrar que a campanha contra o fumo também parecia impossível nos anos 60.

O segundo argumento também é falacioso. As evidências estão contra os que acreditam que mais armas representam mais segurança. Assim pensava a mãe de Adam Lanza. Deu no que deu. Há pessoas que nunca deveriam ter acesso a uma arma, seja por problemas mentais, abuso de álcool ou de drogas, conflitos familiares sérios ou passado criminoso. Gente assim existe em qualquer país. A diferença é que em nenhum outro país essa gente adquire o poder de matar tão facilmente quanto nos EUA. Os americanos possuem 40% das armas em existência. São 270 milhões de armas de fogo esperando a oportunidade de serem usadas.

Grande parte desse imenso arsenal doméstico consiste de armas semi-automáticas com grande capacidade de tiro. É como se fabricantes, vendedores, legisladores e eleitores conspirassem para aumentar a letalidade dos desequilibrados – os únicos que, na prática, fazem pleno uso do poder de fogo das armas modernas.

É difícil imaginar, por exemplo, que o psiquiatra e major do exército Nidal Malik Hasan conseguisse causar tanta desgraça se não contasse com a conivência de um mercado tão liberal. Utilizando uma pistola semi-automática FN 5.7 com mira laser, o major Hasan entrou na base militar de Fort Hood e, aos gritos de “Alá é grande”, disparou 214 tiros, matando 13 e ferindo 29 pessoas. Esses são dados da perícia. Somente depois de atirar por 7 minutos é que Hasan foi atingido pela bala de um dos policiais que atenderam o caso e, finalmente, dominado. O sangue no chão era tanto que médicos e enfermeiros patinavam nele e caíam durante a correria para socorrer os feridos. A pistola que Hasan usou, a FN Five-Seven, é conhecida como “cop killer” por ser capaz de perfurar o colete à prova de balas usado pelos policiais. Hasan adquiriu-a legalmente na Guns Galore (Armas em Fartura), no Texas. Militares não são autorizados a portar suas armas de serviço dentro da base. Hasan perguntou ao gerente da loja qual era “a arma tecnologicamente mais avançada do mercado e com magazine de maior capacidade”. Saiu dali com o que queria.

 

Decisão moral

Após a tragédia de Newtown, o presidente Obama jurou tornar a campanha de controle de armas o tema central da segunda metade de seu governo. Crer nisso é um ato de fé. Obama parece tão convencido do poder de sua retórica que não vê necessidade de tomar medidas concretas para torná-la realidade. Durante os últimos quatro anos Obama preferiu discutir o atendimento médico aos doentes mentais, criticar a violência das imagens que permeiam a cultura nacional, oferecer palavras de consolo às vítimas e tratar de temas tangenciais do que propor medidas efetivas de controle das armas.

 

Comprar uma arma é uma decisão moral. O preço da segurança ilusória que uma arma de fogo proporciona são crianças mortas por balas perdidas, vidas roubadas pela doença mental de um terceiro, brigas de trânsito que acabam na geladeira do IML, seres humanos que amargarão para sempre o instante impensado em que apertaram o gatilho, pessoas de nossa própria família que verão na arma a solução mais fácil para a dor da existência. É um preço alto.

 

Quem acredita que o alto nível de homicídios não tem relação com as leis permissivas de porte de armas nos EUA, tem que acreditar também que os americanos são naturalmente mais propensos à violência e ao desequilíbrio mental do que, digamos, japoneses, franceses, alemães e canadenses. Garanto que não são. Diz a razão que a única solução eficaz não é o controle, mas a eliminação completa das armas de fogo em circulação e a proibição da posse de armas. Os resultados demoram a chegar. Bem mantida, uma arma preserva o seu poder de matar por várias décadas. No entanto, remover armas de fogo em circulação não é tarefa fácil, como aprenderam os australianos. Após um assassinato em massa que matou 35 e feriu 25 pessoas na Tasmânia, o governo australiano aprovou leis extremamente severas de controle de armas. Por muito tempo os críticos das medidas alegaram que elas não estavam reduzindo os crimes por armas de fogo. Defensores das armas nos EUA usaram a Austrália para mostrar que o controle de armas não funciona. Hoje, duas décadas depois, os benefícios dessas leis são inegáveis. Os homicídios por arma de fogo caíram 59% e os suicídios 65%, não tendo sido substituídos proporcionalmente por outros métodos de cometer violências. Na década anterior à lei, ocorreram 11 assassinatos em massa. Depois da lei, nenhum. O problema é que propor medidas semelhantes às da Austrália seria, em Washington, cometer suicídio político. O melhor que se pode esperar são medidas que restrinjam a venda de certos tipos de arma para limitar o potencial assassino de pessoas desequilibradas e poupar a vida de policiais. Mesmo isso será difícil. Qualquer tentativa de avanço nessa direção, por menor que seja, enfrentará muita resistência.

A mera sugestão de proibir a venda de rifles de assalto e magazines de alta capacidade coloca o público pro-gun em polvorosa. Blogs conservadores esbravejam contra a interferência do governo nas liberdades individuais. Políticos – e não apenas os republicanos – recitam a constituição com o fervor de quem tem um olho nas urnas. Vendas de armas de fogo disparam. É como se os EUA fossem, de repente, se transformar no cenário de um daqueles filmes pós-apocalípticos, com Mel Gibson no papel principal, em que os sobreviventes se armam para lutar contra os bandos criminosos que assolam o planeta. Se a possibilidade dessa distopia futurista existisse, comprar armas seria uma decisão racional. Felizmente ela não existe. Ou só existe na cabeça dos malucos sobrevivencialistas americanos. Os EUA não são a Síria ou o Afeganistão. Em um país democrático e civilizado, não só os criminosos têm armas de fogo. Também as têm a polícia e o exército – a sociedade lhes dá o monopólio legal do uso da força para garantir a ordem e a segurança.

Que o leitor brasileiro não fique tentado a tirar conclusões prematuras. Os Estados Unidos são um país violento, mas apenas em comparação com outros países desenvolvidos. A correlação entre número de armas e mortes por tiro não se mantém para os países em desenvolvimento. Segundo estimativas da ONU, o Brasil tem apenas uma fração das armas em circulação dos EUA, cerca de 15 milhões contra 270 milhões. No entanto, em comparação com os EUA, o Brasil apresenta cerca do dobro de homicídios a cada 100 mil habitantes, ocupando o sétimo lugar na desonrosa lista encabeçada por El Salvador. Ainda é cedo para saber se o Estatuto do Desarmamento, que entrou em vigor em 2003, fará diminuir o número de mortos por arma de fogo no Brasil. Como a experiência australiana mostrou, os resultados demoram décadas para aparecer.

Deixo para outros a tarefa de discutir as diferenças e similaridades entre os EUA e o Brasil na questão das armas. Nesse momento, em que defensores das armas nos dois países pressionam o governo por leis mais liberais de posse, convido o leitor a refletir. Comprar uma arma é uma decisão moral. O preço da segurança ilusória que uma arma de fogo proporciona são crianças mortas por balas perdidas, vidas roubadas pela doença mental de um terceiro, brigas de trânsito que acabam na geladeira do IML, seres humanos que amargarão para sempre o instante impensado em que apertaram o gatilho, pessoas de nossa própria família que verão na arma a solução mais fácil para a dor da existência. É um preço alto.

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