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Há exatamente cinquenta anos, comprei por cinquenta centavos de cruzeiros novos na banca do Seu Isael, no Largo São Sebastiao em Valinhos, o primeiro número d’O Pasquim. Não havia a menor possibilidade de eu entender o que escreviam ali. O país estava sob ditadura militar, em plena vigência do Ato Institucional nº 5. Nós, os meninos do ginasial (era assim que se chamavam então os quatro últimos anos do fundamental) estávamos protegidos daquelas ideias subversivas pelas aulas de Educação Moral e Cívica. Mas havia naquele jornaleco mal diagramado e mal produzido, que deixava as mãos pretas de tinta ao fim da leitura, algo que me fascinava. A mistura de irreverência, humor e erudição eram irresistíveis. Vislumbrei, de alguma forma, a possibilidade de uma vida intelectual distante da mediocridade de uma cidade do interior paulista. Desejei ter nascido carioca.

Continuei leitor fiel, esperando ansiosamente todas as terças — acho que era às terças — O Pasquim chegar às bancas. Lia-o da capa à contracapa. Parecia que eu conhecia em pessoa cada um dos colunistas e cartunistas: Jaguar, Sérgio Cabral, Claudius, Ziraldo, Paulo Francis, Henfil, Millôr Fernandes, Tarso de Casto e, o melhor de todos, Ivan Lessa.

De que lado estaria O Pasquim hoje? Suspeito que de lado algum, ou seja, do lado da inteligência.

 

Continuei comprando e venerando o jornaleco até os anos da universidade. Não jogava fora as edições antigas. Aos poucos, a pilha de pasquins foi tomando conta do armário. Até que um dia, bateu a tragédia. Minha coleção, na qual não faltava um número sequer, estava estendida pelo assoalho da casa, a cara da Leila Diniz salpicada de tinta latex. Os pintores que vieram pintar a casa de meus pais usaram aqueles jornais velhos para forrar o chão. Tiveram o cuidado de pegar os de baixo da pilha primeiro, os mais antigos. Quase tive um surto. Hoje, os agradeço. Como na Praça Clóvis, de Paulo Vanzolini, às vezes é preciso uma ajuda alheia para nos livrar do nosso atraso de vida.

O Pasquim foi parte importante da minha formação intelectual. Em uma demonstração de honestidade intelectual rara na imprensa brasileira, o jornal publicava até artigos contra a sua própria existência. No primeiro número, diz Millôr, que não embarcou logo de cara na ideia: “Não estou desanimando vocês não, mas uma coisa eu digo: se esta revista for mesmo independente não dura três meses. Se durar três meses, não é independente. Longa vida a esta revista!”. O Pasquim durou bem mais do que três meses. Mais exatamente, vinte e dois anos. E se manteve tão independente quanto possível, o que era temerário na época. Lembrava o Millôr aos colegas de redação: “…nós, os humoristas, temos bastante importância pra ser presos e nenhuma pra ser soltos.”

“Humor é pé na cara” — Henfil

 

Sabendo da perda da minha coleção, meu amigo Giorgio Giorgi Jr., sempre generoso, me enviou aqui para os EUA a Antologia d’O Pasquim, que guardo com carinho. É bom ter amigos de verdade. Muito do que está ali tem relevância para os tempos atuais. De que lado estaria O Pasquim hoje? Suspeito que de lado algum, ou seja, do lado da inteligência, zombando dos poderosos. O lema do jornal sempre foi “Ridendo castigat mores” (Rindo se critica os costumes), ou, em linguagem de hoje, “Ridendo castigat Moro”.

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